58 milhões de votos: o que nos diz a quantidade de derrotados na disputa eleitoral de 2022

Por Alex Conceição
Publicado em 05/11/2022

Cinquenta e oito milhões de votos não podem ser ignorados. Principalmente quando estamos falando de votos em um candidato que durante quatro anos de mandato conseguiu fazer com que o país parecesse o enredo de um romance distópico. Mais ainda quando essa distopia guarda semelhanças absurdas com uma realidade histórica vivenciada entre as décadas de 1920 e 1940, principalmente na Europa, mas também em outras partes do mundo. Se esses votos não serviram para eleger o referido candidato, eles devem servir para que fiquemos atentos, pois a democracia burguesa demonstra, cada vez mais, nítidos sinais de apodrecimento.

As eleições para presidência do Brasil em 2022 foram decididas no segundo turno, numa disputa bastante acirrada. Excluídos votos nulos e brancos e as abstenções, foram mais de cento e dezoito milhões de votos, e Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato eleito, conseguiu 50,9% dos votos. Isso significa que quase metade das pessoas que escolheram entre um dos dois candidatos, apoiaram Jair Messias Bolsonaro e, ainda que de forma “irrefletida”, todo discurso de ódio com que ele construiu a sua imagem ao longo da sua carreira política. E é justamente aqui que devemos tecer um primeiro questionamento: o que leva um número tão grande de pessoas a se deixar persuadir por um discurso tão semelhante aos discursos fascistas?

Essa pergunta não é algo simples de respondermos agora, assim como não foi fácil de ser respondida nos anos em que o fascismo ascendeu ao poder na Itália e o nazismo na Alemanha. Dizer que tudo se resume a uma questão de classes não seria o mais acertado, tendo em vista que entre os milhões de votos dados ao referido candidato, certamente há uma diversidade de pessoas em condições sociais diversas. Decerto há muita clareza quanto ao fato de Bolsonaro representar os interesses de grande parte do agronegócio, dos grandes empresários, de mineradoras, madeireiras etc., o que se configura como uma óbvia determinação de classe. No entanto, além disso, ele apresenta um discurso fatalista, comum a políticos populistas (também presente na prática discursiva de Lula), profundamente embebido de valores “conservadores” (o que em tese o diferencia do seu adversário). Nesse discurso são apontados os “inimigos”, que, segundo os bolsonaristas, devem ser combatidos pelo bem da nação. Nesse ponto a proximidade com o fascismo torna-se mais evidente ainda, pois, além do Partido dos Trabalhadores (PT) – apontado como gerador de toda corrupção do quadro político brasileiro -, o alvo do ódio dos bolsonaristas é um “comunismo” genérico que abrange tudo aquilo que foge das normas tidas por eles como corretas e, de maneira mais velada, as instituições e práticas que dão sustentação ao regime democrático. Sendo assim, existe mais do que uma simples determinação de classes por trás do que cativa um número tão grande de eleitores. Existe uma afetividade que está ligada a um imaginário coletivo historicamente construído e que toca em um ponto sensível de uma das características do perfil do povo barsileiro, que é o ódio às minorias e, consequentemente, às suas reivindicações e conquistas. 

Nisso a religião cristã tem mantido um papel fundamental no cenário político brasileiro, pois é justamente sobre valores morais defendidos por muitos deles – como a criminalização do aborto, a proibição do uso da maconha, a defesa da família tradicional, “controle social” das relações homoafetivas – que os discursos conservadores dos bolsonaristas tem se pautado. 

Muitos cristãos eleitores de Bolsonaro alegam ter medo da esquerda que Lula supostamente representa, pois ela estaria comprometida em destruir valores da sociedade tradicional e até mesmo destruir igrejas! Isso mostra o quanto a mobilização dos afetos é realmente parte indissociável da política. Nesse caso, como em muitos outros, o medo é acionado como dispositivo para angariar votos. Não podemos nos esquecer, porém, que esse medo não é algo utilizado exclusivamente pela direita conservadora, mas também pelos opositores que tratam a sua vitória como “única” saída de um governo extremamente perigoso e de tendências ideológicas bastante autoritárias. A diferença entre um medo e outro está nos acontecimentos históricos que os sustentam. Vivenciamos quase quatro mandatos de governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores, mas em nenhum deles vimos a “perseguição” à religião cristã e a destruição dos valores tradicionais que é tão propalada nos discursos de oposição ao candidato eleito. Por outro lado, o que os petistas utilizam como argumento para o medo, são as características que estão impregnadas na imagem de Bolsonaro construída por ele mesmo, que revelam similaridades com realidades históricas comprovadamente nocivas aos princípios humanitários. Aqui nos referimos às ditaduras fascistas e a todas as ideologias autoritárias que ganharam força ainda na primeira metade do século XX e também às ditaduras militares instauradas na América Latina ao longo da segunda metade do século XX, no contexto da chamada Guerra Fria.

 Um fato interessante nesse quadro de disputas afetivas é o poder de persuasão que o bolsonarismo  demonstrou através de suas lideranças religiosas, levando muitos eleitores a ignorarem ou fazerem vista grossa para uma série de falas misóginas, racistas e homofóbicas do candidato à reeleição e atual presidente. Falas que ferem até mesmo o “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, um dos princípios fundamentais da ética cristã. Porém, é lógico que não podemos pensar esse eleitorado como tábula rasa. O fato de determinado discurso surtir mais efeito em determinado grupo, está ligado a outros fatores socioculturais, como, por exemplo, a forma desse grupo entender e interpretar o seu passado e também a sua compreensão sobre as relações raciais, de gênero, de classe etc. Entendimento, interpretação e compreensão que não são formados exclusivamente nos círculos religiosos, mas em toda estrutura das relações sociais. Se um número tão grande de pessoas em uma sociedade está disposto a apoiar abertamente ou não, deliberadamente ou não, um discurso de agressiva oposição àquilo que é diferente de si, o problema não está em algo pontual ou isolado, mas sim na própria estrutura das relações sociais que se manifestam cotidianamente e de forma corriqueira.

Outro fato para o qual devemos chamar a atenção é o valor que a História possui nessa disputa. No entanto, para não ficarmos muito cansativos e darmos um tempo para que você reflita e absorva o que foi dito até agora, deixaremos essa reflexão para uma segunda parte desse texto, que será lançada em breve. 

Até lá!

Foto de Capa: Pixabay

Alex Conceição é professor de História na rede publica, compositor, “escritor”, enxadrista e amante da arte em suas várias linguagens.

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