Olhar para fora de casa e sentir tristeza e receio. Pensar em fazer um simples passeio e sentir angústia e indignação. Esses são os sentimentos que tomam conta de Jussara Amaral quando é necessário sair de sua casa. Já conhece bem os desafios que esperam por ela em qualquer ida ao centro da cidade ou outro lugar que queira ou precise ir. Há cinco anos, Jussara Amaral sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e desde então convive com as sequelas que, dentre outros aspectos, afetam seus movimentos.
Por isso, Jussara utiliza uma cadeira de rodas para se locomover, e precisa estar sempre acompanhada de alguém que possa movimentar a cadeira até os locais. Durante o tempo em que está cadeirante, Jussara sente como se sua mobilidade estivesse cada vez mais restrita e limitada. “Eu nem saio, é difícil”, comenta. Diversos fatores contribuem para essa situação, a maioria deles está relacionada a falta de acessibilidade nas vias públicas da cidade que impedem que a cadeira de rodas que Jussara usa consiga desempenhar seu papel.
Calçadas pequenas, com desníveis, buracos, amontoadas com produtos e propagandas de lojas e sem sinalização, são alguns dos empecilhos que obrigam a cadeirante a se deslocar pelas ruas. Espaços esses onde Jussara também enfrenta outros problemas devido ao calçamento que abrange a grande maioria das ruas da cidade.
A forma com que a cadeira se movimenta em meio às irregularidades dos paralelepípedos – além de correr o risco de causar algum estrago na própria cadeira por conta de solavancos e entraves –, provoca dor nas costas e um grande desconforto na cadeirante. “Transitar fica impossível”. Muitas vezes, para evitar a frustração, ou poupar o trabalho de quem precisa empurrar sua cadeira de rodas, Jussara se vê obrigada a ficar em casa.
“Eu fico dentro de casa muito tempo. Não posso sair para tomar um sorvete, comer uma pizza no fim de semana, ir na casa de minha mãe, não posso. (…) Eu evito sair e como consequência a gente [pessoa com deficiência] se isola do mundo”. Para Jussara, é como se ela, por conta própria, precisasse se adequar aos espaços por causa da deficiência. Quando essa alternativa é inviável, o que resta é o isolamento.
“Além do chão que eu ando, da calçada que eu subo”: o que é acessibilidade?
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD): Pessoas com Deficiência 2022, o Brasil tem cerca de 18,6 milhões de pessoas com deficiência, desse total, mais da metade são mulheres, com 10,7 milhões. Os indicadores do estudo mostram também que o Nordeste é a região com maior percentual de pessoas com deficiência, com 5,8 milhões, o equivalente a 10,3% do total. Em seguida, vem a região Sul, com 8,8%; Centro-Oeste, com 8,6%; Norte, com 8,4%. A região Sudeste foi a que teve o menor percentual, com 8,2%.
A nível estadual, a Bahia tem o terceiro maior contingente e é o quinto maior em proporção, com 1,5 milhão de pessoas com deficiência. O número corresponde a 10,4% da população do estado. Garantir os meios para que todas essas pessoas tenham acesso à cidadania, lazer, cultura, saúde e educação é obrigação do poder público, conforme descrito na Lei nº 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Assegurar acessibilidade urbana é um dos primeiros passos para a garantia desses direitos. A arquiteta e urbanista, Micheline Gusmão, define acessibilidade como a capacidade de um produto ou serviço ser usado por toda e qualquer pessoa, independente de suas deficiências permanentes ou temporárias. Micheline menciona ainda a NBR-9050, norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que regulamenta a acessibilidade em todas as cidades, a fim de certificar que haja inclusão e igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.
Em obras públicas, sejam federais, estaduais ou municipais, incluir medidas de acessibilidade é uma obrigação. Ainda assim, por vezes esses critérios são atendidos de forma parcial, ou mesmo inconsistente. “O uso de rampas e banheiros acessíveis estão comumente inseridos nas novas obras, mas a implementação do piso tátil e a sinalização em braille ainda é precária”, explica a arquiteta. Além disso, Micheline conta que percebe maior ausência de medidas de acessibilidade quando se tratam de obras projetadas pelo município.
“Observando as obras recentes, percebe-se que há um raso entendimento de que bastam rampas, piso tátil e banheiros com barras para tornar o espaço acessível”, argumenta. Por mais que essas medidas sejam importantes, não são o bastante para garantir ampla acessibilidade aos locais. “A lei garante muito mais do que tem sido feito. Pensar em uma cidade mais acessível requer, além da infraestrutura, o transporte, o serviço público e a tecnologia. Pensar em uma cidade mais acessível requer planejamento e, como quase tudo na política, requer luta e representatividade”.
Para Janaina Brito, “a acessibilidade urbana não vai limitar apenas na calçada na rua que eu tenho que atravessar, mas na sociedade que convive dentro dela. (…) Ela vai muito além do chão que eu ando, da calçada que eu subo”. Janaina tem visão monocular com baixa visão, e acredita que a acessibilidade na cidade deve estar alinhada com o entendimento da população sobre a importância dessas medidas.
Além de enfrentar a falta de medidas de acessibilidade, é preciso lidar também com a falta de respeito e empatia daqueles que a encaram com desdém e desprezo por conta de suas necessidades. Por ter baixa visão em um olho e conseguir distinguir alguns obstáculos enquanto anda, Janaina já precisou ouvir que estava fingindo ser cega, de questionarem o uso da sua bengala e a olharem de forma incriminadora, como se não pudesse utilizar dos seus direitos como pessoa com deficiência. “É muito difícil. O olhar do outro é o que mais machuca”, conta.
Ela sente o preconceito na pele a cada vez que precisa realizar atividades do dia a dia. Seja em estabelecimentos privados, públicos, em ruas, praças ou eventos, a falta de acessibilidade também está presente no modo como as pessoas encaram sua deficiência. “A gente vai hoje dentro de Poções, principalmente dentro do comércio, então, eu pego a fila para deficiente e está cheio de pessoas ali que não são deficientes. E eu estou aqui com o cordão do girassol. Mas as pessoas do comércio e a sociedade não sabem o que é esse cordão. Então, se eu passo na frente, eles resmungam e olham feio para mim”.
Janaina observa que em Poções a acessibilidade é dada de forma incompleta, como se existisse apenas para cumprir uma obrigação e não levando em conta o que as pessoas realmente precisam. “São vários locais que eles te dão uma acessibilidade pela metade, que te silencia. (…) Te dá hoje um pedaço de uma coisa, amanhã um pedaço de outra, e a gente tem um pessoal que nem sempre vai conseguir ter um diálogo”. Assim como Jussara Amaral, Janaina vive as consequências da privação desses direitos: um isolamento social cada vez maior, além do prejuízo na saúde mental.
Mesmo para as pessoas que têm baixa mobilidade, mas consegue deslocar-se com maior independência a “acessibilidade pela metade”, como descreve Janaina, torna-se um problema. Elivelton Cerqueira Leite tem uma deficiência no quadril esquerdo, o que ocasionou um encurtamento do membro. Por isso, para se locomover ele utiliza uma muleta que ajuda a compensar a diferença entre as duas pernas. Elivelton conta que, de modo geral, não enfrenta muitas dificuldades, mas as calçadas esburacadas, com alturas diferentes e os paralelepípedos dos calçamentos, são questões que impactam na sua mobilidade.
“Nunca me senti prejudicado, mas se as ruas fossem asfaltadas e as calçadas fossem todas certinhas, eu acho que seria melhor pra mim”, explica. Quando encontra algum empecilho na calçada, Elivelton – assim como Janaina e Jussara – precisa andar na rua, disputando espaço com os automóveis. Por vezes, essa é a opção que apresenta mais chances de estabilidade. Contudo, se a rua passa a ser um problema, retorna para a calçada, e desse jeito vai driblando os desafios até chegar ao seu destino.
Por mais que consiga contornar esses obstáculos, Elivelton sabe que nem todas as pessoas têm as mesmas opções e reconhece que a acessibilidade na cidade deixa a desejar, principalmente para cadeirantes e pessoas cegas. Da mesma forma, Janaina sabe que ter baixa visão ainda a ajuda em alguns locais, e se preocupa com aqueles que são cegos ou surdos e precisam se guiar com pouca ou nenhuma sinalização; que não encontram o mínimo de acessibilidade nem mesmo nos órgãos que deveriam lhes acolher, proteger e ser espaços de diálogo. “Os ambientes não têm acessibilidade e o ser humano não tem a humanidade”, destaca Janaina Brito.
Quais ações têm sido tomadas?
No que diz respeito às obras realizadas recentemente no município, o engenheiro civil da Secretaria de Infraestrutura, Diego Silva, explica que todas incluem parâmetros de acessibilidade. “Todas as obras novas ou obras de reforma que são realizadas no município já contemplam essa questão, que é basicamente a acessibilidade do cadeirante, e às vezes em alguns casos a pessoa com limitação visual, que também é um caso mais raro, a questão da limitação visual”.
O engenheiro relata ainda que as medidas são realizadas conforme o fluxo de pessoas e a necessidade. Nesse sentido, a prefeitura atua mediante os critérios da legislação. “A gente não vê tantos casos de pessoas que têm problema com a mobilidade protestando ou requerendo algum sentido. Se tiver, obviamente que vai ser ouvido, o município sempre está pronto para poder fazer, agir e proceder a acessibilidade para quem precisa.”
Quanto às ruas e praças mais antigas que não contam com nenhuma medida de acessibilidade, Diego Silva associa essa falta à forma como esses locais foram projetados e construídos, pois na maioria dos casos não houve um acompanhamento técnico de engenheiros ou arquitetos. Ele reforça também que há previsão de reforma desses espaços, como é o caso da praça Jardim dos Pássaros, mas que o custo para a reforma é alto e, por isso, depende da disponibilidade orçamentária do município.
Já em situações onde qualquer tipo de acessibilidade é comprometida pela intensa passagem de pessoas – como é o caso da feira livre, ou mesmo a Festa do Divino –, o engenheiro defende que é preciso regulamentar e repensar a organização desses lugares. A feira, dentre outros espaços do centro da cidade, tem sido um problema pelo congestionamento das ruas com barracas e calçadas, onde lojas utilizam o espaço para uso de toldos, estacionamento e exposição de produtos. “Precisa de uma regulamentação e também de um consenso”.
Em relação à Festa do Divino, ele acredita que é um evento de difícil mobilidade para toda a população, por envolver grande circulação de pessoas do município e também de cidades vizinhas. Então, ainda que haja medidas de acessibilidade, podem não ser efetivas devido ao contingente de pessoas. “É uma coisa que é só teórica, mas na prática não funciona”.
Caminhos para a acessibilidade no município
Para que Poções se torne uma cidade acessível, é necessário que mudanças sejam feitas, desde as ruas e praças, até secretarias, escolas, postos de saúde, Prefeitura, Câmara de Vereadores e demais locais onde a população exerce sua cidadania. Micheline Gusmão cita dois pontos centrais para que a acessibilidade seja uma realidade: capacitação da equipe técnica da gestão e informação para a população sobre a relevância e impacto desse tipo de obra na qualidade de vida. “Implementar acessibilidade é urgente. É muito além do cumprimento de uma Lei, é sobre empatia. É necessário que todos tenham inclusão e igualdade de tratamento”.
Já para Janaina, a educação é uma ferramenta fundamental para lutar contra a desinformação e o preconceito que, muitas vezes, estão ligados a realidade de pessoas com deficiência. “A gente tem que ensinar o outro a ter respeito, se a gente iniciar isso pelo menos dentro das escolas, que os adolescentes saiam dali preparados para um universo que é plural, que é amplo, que é diverso”.