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Jornadas sem fim: o peso invisível do trabalho feminino

Mulheres que possuem uma carga de trabalho dupla ou até tripla devem ficar atentas a sinais de esgotamento
Por Nataly Leoni
Publicado em 11/04/2025
Foto Foto: Freepik

Todos os dias, exatamente às cinco horas da manhã, Márcia Almeida acorda e segue o mesmo ritual: prepara o café, arruma as três filhas e as organiza para a escola. Ao sair de casa, leva as crianças às respectivas escolas e chega ao trabalho onde atua como auxiliar de serviços gerais às sete horas em ponto. São oito horas de expediente, dia após dia.

No horário de almoço, ela busca as filhas, as deixa com o pai e depois retorna ao trabalho. Quando o expediente finalmente chega ao fim, ela volta para casa. Sem tempo para descansar, prepara a comida para o dia seguinte ou quando não consegue, recorre ao que já estava pronto no dia anterior. Nesse momento, ela ainda encontra tempo para limpar a casa. A rotina segue, sem grandes variações, em um ciclo que se repete diariamente.

Márcia Almeida sente que em meio a essa correria do dia a dia, ela não consegue cuidar de si mesma. “Quando o dia acaba eu já estou morta, só dá tempo mesmo de tomar banho e dormir, no outro dia já é hora de trabalhar novamente […] é muito pesado pra mim”, conta.  

Apesar de cansativa, essa jornada tripla é uma realidade na vida de muitas mulheres brasileiras. De acordo com o estudo “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, publicado em 2024 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE,  as mulheres que trabalham fora dedicam cerca de 80% a mais do seu tempo em afazeres domésticos do que os homens.

A psicóloga Daniela Sampaio conta que esse acúmulo de funções pode gerar um desgaste físico e emocional profundo, afetando diretamente a saúde mental e a qualidade de vida dessas mulheres. “Ela  trabalha, quando chega em casa, não descansa desse trabalho e vai para uma outra jornada, que é organizar a manutenção da vida dela e de seus familiares. Muitas vezes o que acontece quando a mulher entra no processo de adoecimento laboral, ela associa que o problema é o trabalho formal, porque ela própria não compreende enquanto um trabalho, o cuidado com a casa e a família”, afirma.

Daniela Sampaio, psicóloga

Essa sobrecarga se reflete na vida de Márcia. Ela relata que devido ao acúmulo de funções e a falta de rede de apoio para ajudá-la nas tarefas do dia a dia ou em momentos excepcionais, ela sente dores de cabeça constantes. “Quando eu estou muito cansada ou não dá tempo de levar minhas filhas na escola, tenho que pagar uber ou mototáxi para elas. Todo mundo da minha família trabalha nos mesmos horários que eu, então eu tenho que me virar sozinha”, conta ela. 

Essa realidade não é uma exceção, a  realização de trabalhos domésticos por parte das mulheres é quase uma regra em boa parte dos lares brasileiros. Segundo dados publicados em 2022 pelo IBGE, 92,1% das meninas e mulheres com 14 anos ou mais realizam tarefas domésticas, cuidam de pessoas, ou desempenham ambas as atividades, uma diferença de 18,2 pontos percentuais em relação aos homens. O mesmo estudo mostra que elas dedicam 9,6 horas a mais que os homens a esses afazeres. 

Isso é o reflexo de uma sobrecarga de trabalho que está enraizada nas estruturas sociais e que ainda colocam o cuidado como uma responsabilidade quase exclusiva das mulheres. “Esse acúmulo de demandas está muito associado ao fato do que é entendido enquanto espaço da mulher no mundo, nesse mundo social, no contexto do lar, da família, no trabalho”, explica Daniela Sampaio. 

Essa forma de enxergar o trabalho doméstico e de cuidado causa efeitos em como as próprias mulheres o entendem. É comum, explica Daniela, que mulheres relatem um cansaço constante, mas ficam em dúvida quando tentam nomear a fonte do esgotamento. “Ela esbarra num sentimento de culpa, porque acha que é uma obrigação dela […]. A gente tem uma cultura que diz que a mulher pode tudo, mas, continua deixando essa ideia de que ela pode tudo inclusive no trabalho de casa”.

Entre os principais sinais de alerta para um possível processo de adoecimento emocional  estão sintomas que vão além do cansaço comum. Daniela Sampaio explica que acordar exausta mesmo após uma noite de sono, sentir-se incapaz, com a autoestima fragilizada e com a sensação de que tudo que se faz é irrelevante ou invisível aos familiares, amigos ou até da sociedade  são indícios de um desgaste também psicológico. Além disso, pode haver episódios de insônia, ansiedade, taquicardia, angústia, a percepção de que o que se faz nunca tem fim e a perda de interesse em atividades que antes davam prazer. 

Por que o trabalho doméstico ainda é invisibilizado?

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho – OIT, em 2021, 75% do trabalho de cuidado não remunerado no mundo foi realizado por mulheres. No entanto, apesar de exigir tempo, energia, desgaste físico e emocional, o trabalho doméstico e de cuidado, segue com a deslegitimação. Daniela Sampaio explica que “essa ideia, na verdade, vem de uma lógica antiga de que trabalho é aquilo que coloca comida na mesa. Então, as atividades que compreendem a manutenção da vida, elas não são vistas enquanto trabalho”. 

Essa forma de enxergar o trabalho doméstico, acaba colocando a mulher dona de casa em uma posição de desocupada, pois o trabalho é invisibilizado.  “Porque não se compreende que essa abdicação que você faz do trabalhar fora, do cuidar de sua carreira, é em prol de um outro trabalho que está acontecendo alí. Isso acontece também com mulheres que empreendem, principalmente de casa, a mulher que faz um crochê, que faz um bordado, que vende um doce, um bolo, uma marmita de casa, aquele trabalho sempre tem uma tendência a uma desvalorização”, explica Daniela Sampaio. 

Este julgamento se torna ainda mais evidente na vida de mulheres que escolhem, ou precisam dedicar-se inteiramente ao cuidado do lar e dos filhos. Há cinco anos, quando teve sua filha, Andréia Costa deixou de trabalhar fora para se dedicar aos trabalhos de casa. “Eu parei de trabalhar para priorizar ela, a casa e o esposo”, conta. A decisão não foi fácil, porém foi necessária. Seu marido é caminhoneiro, passa dias na estrada e ela acaba, na maior parte do tempo, ficando à frente da rotina doméstica. “Se eu não fizer, quem vai fazer pra mim? Quem é que vai fazer? Então, eu levanto e vou fazer”. 

Apesar do cansaço, Andréia se adaptou e acabou encontrando prazer na rotina. “Acho que é uma carga horária muito pesada dentro de casa, e é muito cansativo, mas eu gosto, eu gosto de cuidar da casa, cuidar do marido, cuidar da roupa…”, conta. 

Andréia Costa, dona de casa

Ao passo que mulheres são criticadas por dedicar todo o seu tempo aos afazeres domésticos e ao cuidado, Andréia Costa conta que ela tem o apoio de sua família para continuar trabalhando em casa. “Não veem como preguiça, ou que não quero trabalhar. Quem é dona de casa, que cuida de tudo, sabe o quanto é exaustivo”. 

Seria a PEC 4×3 uma das soluções para esse acúmulo de funções?

Atualmente, a escala de trabalho mais comum no Brasil impõe uma rotina exaustiva de seis dias de trabalho e apenas um de descanso, conhecida como 6×1. Com essa escala, o trabalhador acaba totalizando 44 horas de trabalho semanais, estabelecidas pela Consolidação das Leis de Trabalho – CLT. Uma jornada que, principalmente para mulheres, não deixa espaço para a vida pessoal, lazer e até mesmo o descanso essencial a todo ser humano. 

Diante disso, recentemente, a deputada Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou uma proposta de Emenda à Constituição – PEC, com uma nova divisão. Seriam quatro dias de trabalho e três de descanso, uma escala 4×3 que diminuiria a jornada semanal para 36 horas, sem redução no salário dos trabalhadores. 

“Ela percebeu os impactos, principalmente na nossa jornada de mulher,  mãe de família, dona de casa e profissional. A gente tem que se virar nos 30 para dar conta de tanta coisa,  acho que principalmente vai repercutir na nossa realidade, na nossa participação no mercado de trabalho de uma forma muito positiva”, afirma a advogada e presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Vitória da Conquista, Rozana Martins.

Rozana Martins, advogada

O projeto, no entanto, encontra resistência, como explica Rozana Martins. Representantes do setor empresarial argumentam que a redução das horas aumentaria os custos das empresas e poderia prejudicar a competitividade. Mas, para muitas mulheres, o preço pago já está alto demais, e não é apenas financeiro. De acordo com a advogada, o impacto da exaustão sobre a saúde física e mental, aliado à dificuldade de permanecer no mercado de trabalho, reforça a urgência de repensar o modelo atual.

Caso a proposta seja aprovada, Rozana Martins afirma que trará efeitos positivos para o trabalhador, mas principalmente para as mulheres que se dividem em uma jornada dupla e, muitas vezes, até tripla. Para ela, poderia ser uma forma de equilibrar as responsabilidades da casa e da família entre o marido e esposa. “A mulher é responsável pela casa, ela é responsável pelos filhos, ela é responsável pela profissão. A mulher tem que ser multitask e está se chegando à conclusão que a mulher multitask não aguenta muito o tempo”, afirma.

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