Xenofobia e a visão simplista de tratar o Nordeste como uma região homogênea

Apesar das discussões acerca da xenofobia praticada contra o Nordeste ter ganhado força nos últimos dias, os dados apontam que comentários e práticas preconceituosas contra povos nordestinos sempre aconteceram.
Por Redação
Publicado em 08/10/2022

Após os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais de 2022, o Nordeste, assim como os nordestinos, passaram a ser alvos de inúmeros ataques de cunho xenofóbicos e preconceituosos.

Os ataques se deram, principalmente, devido a quantidade de votos recebidos pelo candidato à presidência, Luís Inácio Lula da Silva (PT), nos estados da região.


Apesar das discussões acerca da xenofobia praticada contra o Nordeste ter ganhado força nos últimos dias, os dados apontam que comentários e práticas preconceituosas contra povos nordestinos sempre aconteceram.

Uma matéria do Brasil de Fato revelou que, nas eleições de 2010, 2014 e 2018, o discurso de ódio esteve presente, até mesmo durante o período de pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.

“Em 2010 e 2014, a eleição de Dilma Rousseff (PT) foi o estopim das ofensas e depreciações direcionadas ao povo do nordeste, em uma série de postagens, mesmo com a ex-presidente tendo vencido a primeira eleição em estados como o Rio de Janeiro e em São Paulo”. (Brasil de Fato)

Quando as apurações foram encerradas, no último domingo (02/10), diversas imagens começaram a ser compartilhadas. Umas eram argumentos que denunciavam o preconceito, outras eram falas que alimentavam o imaginário negativo a respeito do Nordeste brasileiro.

Entre elas, a imagem abaixo:

Fonte: redes sociais

O Site Coreto convidou o professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Matheus Silveira, mestre e doutor em Ciências Sociais, para falar a respeito do assunto.

“Esse pronunciamento traz alguns dados objetivos e que parecem falar por si só. Parece ser um dado definitivo de interpretação da realidade, mas que evidentemente não corresponde. Em primeiro lugar por tratar o nordeste como uma região homogênea. O erro crasso já está aí. O Nordeste não é homogêneo.”

“O Nordeste tem biomas diferentes, por exemplo, tem cidades litorâneas que, por conta do turismo, contam com uma circulação maior de pessoas e uma circulação econômica mais vultosa do que do semiárido, que é muito menos povoado que o litoral e é castigado pelas secas, mas que também tem uma tradição cultural também muito forte. O sertanejo é um um tipo característico do Brasil que é muito bem adaptado a um bioma que não oferece condições naturais, sequer razoáveis para a subsistência”
, afirma.

Um dos maiores problemas enfrentados no Nordeste é a seca. A Região é caracterizada pela predominância do clima semiárido e da vegetação de caatinga. Mas esse também não é um problema recente, antes mesmo do Brasil se tornar uma república, muitas devastações decorrentes da seca foram registradas no sertão nordestino.

Então essa dicotomia entre sertão e litoral, entre alguns polos de desenvolvimento, que mesmo estando no sertão, como foi no passado a Chapada Diamantina, como é o caso do oeste da Bahia, do norte da Bahia com divisa em Pernambuco, Juazeiro e Petrolina, se destacam por serem prósperas. Mesmo Vitória da Conquista assim como Feira de Santana, são cidades que se destacam como polo médico, educacional, comercial e outros. As capitais, sobretudo aquelas mais pujantes como Fortaleza, Recife e Salvador são lugares e sub-regiões que fogem dessa descrição que homogeneiza, torna homogêneo, mas também é simplista”, destaca Matheus Silveira. 

“Do ponto de vista do que está sendo enfatizado em relação aos auxílios governamentais. Isso é uma realidade no país inteiro, no continente inteiro. Na Argentina se tem um nome muito específico, eles chamam de os subsidiados, que é quem recebe o subsídio do estado para poder subsistir, para poder viver em um mundo em que o desemprego se tornou estrutural, em que há achatamento de salários, em que a moradia encareceu, que há gentrificação, no sentido de expulsar os pobres das regiões centrais e viver na periferia.

Então, são características que estão presentes em todas as sub-regiões e que torna impossível para o trabalhador se manter dentro das regras de mercado. Prover sua própria existência se tornou impossível e, de uma certa maneira, inviabiliza até que o trabalhador possa se deslocar, pagar um aluguel e viver. Então esses auxílios, esses subsídios, inclusive favorecem o capital. Sem eles o capital não se reproduz porque o capital precisa do trabalhador também”
.

A agência de classificação de risco, Austin Rating, através de um levantamento feito em 2022, apontou que o Brasil já ocupa o 9º lugar no ranking da taxa de desemprego no mundo, e deve ficar entre as maiores até o final do ano. 

No 1º trimestre de 2022, a taxa de desemprego no Brasil aumentou 11,1%, apesar da estabilidade, se comparado ao 4º trimestre de 2021, que apresentou o mesmo número. No entanto, o 2º trimestre de 2022 revelou que existem mais de 10 milhões de pessoas desempregadas no país. Entre os estados com a maior taxa de desocupação, dois pertencem a região do Nordeste e um ao Sudeste: Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro.

Então, quando se fala em auxílios governamentais, é preciso ter em mente que não é algo exclusivo do nordeste. E que no caso do nordeste também não coincide com a votação que tem sido recorrente nas últimas eleições. Por exemplo: quantas pessoas recebem auxílio? Será que é setenta por cento? Possivelmente não. Mas essa foi a votação, por exemplo, dos candidatos do Partido dos Trabalhadores em alguns estados nordestinos como, por exemplo, Maranhão e Piauí, na própria Bahia também a votação foi muito expressiva”, pontua.

“É evidente que se revela como tendência. E por quê? Aí é importante a gente analisar esse elemento, porque nós temos no Brasil, independentemente da região, um padrão de atuação de políticas públicas que favorece primeiramente os não ricos. Quem são os não ricos? Os aposentados do setor público onde estão militares, onde estão os funcionários públicos de modo geral, onde estão os funcionários do legislativo e do judiciário e que é o maior aporte de gastos do estado brasileiro.

O maior aporte de gastos não é com o Bolsa Família. É com a aposentadoria de funcionários públicos do alto escalão. Em segundo lugar, quem vai ser beneficiado? Quem frequenta a universidade pública, porque também não é barato, é um espaço que foi historicamente frequentado pela classe média e pela classe média baixa. Em terceiro lugar, os investimentos sociais vão para onde? Para os pobres. Aqueles que estão nas escolas públicas, que utilizam o SUS, que utilizam o transporte público. Mas ainda assim é um aporte, é um investimento menor do que para os não pobres”.

Em fevereiro de 2019, o site Aos Fatos publicou uma matéria sobre a situação da Previdência Social representada em seis gráficos, com dados retirados dos sites oficiais do governo federal.

Naquele ano, o orçamento previsto para a Previdência era de R$ 637,9 bilhões, que resultava em quase o dobro do orçamento destinado para saúde, educação, assistência social e segurança pública, que juntas, somavam um orçamento previsto de R$ 360 bilhões.

“A questão fundamental aqui, é que toda essa tentativa de estigmatização da população que efetivamente depende dos auxílios, sem o auxílio é uma população miserável, com o auxílio passa a ser uma população pobre. Se a gente fizer uma abordagem histórica, esses estão completamente descobertos de políticas públicas no Brasil. Por quê? Uma pessoa miserável que vive na seca, que mora na rua, que trabalha em profissões sazonais, essa pessoa normalmente não tem uma expectativa de vida para se aposentar, e caso ela se aposente, é com um salário mínimo. Essas pessoas não conseguem atingir uma escolaridade suficiente para entrar na universidade pública, e normalmente essas pessoas sequer conseguem terminar o ensino médio, portanto, percorrem ali os doze ou treze anos de escolarização”.

“As políticas públicas nunca chegaram para essa população. Esse cenário começa a mudar numa sequência de governos que começa com o Itamar Franco, que criou o vale gás. Fernando Henrique amplia com o Bolsa Escola e Lula amplia ainda mais com o Bolsa Família. E aí, se torna um pagamento em espécie, mais objetivo, feito pelo setor bancário e diretamente do governo federal para o beneficiário. Essa política pública é uma maneira de fazer com que o estado chegue diretamente a população miserável sem nenhum tipo de intermediário.

E é evidente que quem sempre esteve excluído historicamente de qualquer política pública, vai sentir uma vinculação de identidade e principalmente ideológica, no sentido político, e que vai votar em um grupo político porque é o grupo que faz a política pública chegar a sua classe social. É nesse sentido que se tem um impacto eleitoral, e no caso do Nordeste, que tem um contingente maior de miseráveis e de pobres, essas políticas públicas fazem diferença e têm um impacto eleitoral.

Mas não é nessa proporção de se imaginar que o Nordeste é carregado nas costas, essa é uma visão simplista, porque, na verdade, quando a gente pensa a economia brasileira e o seu nível de integração, esse beneficiário do Bolsa Família, ele consome nos mercados, consome produtos industrializados, e esses produtos vem, na maior parte, do Sul e Sudeste. Então, é importante evidenciar que existe um processo de interdependência entre as diversas regiões econômicas, e também podemos perceber que o dinheiro que é investido no Bolsa Família também chega para o pequeno produtor do Sul, chega pra pequena indústria de laticínio de Minas Gerais, para indústria automotiva que sempre se localizou, preferencialmente, no estado de São Paulo.

Existe um nível de integração muito, mas muito alto mesmo, e no caso do Nordeste caberia uma abordagem no seguinte sentido: é importante dizer que sim, o PT conseguiu conquistar a maior parte dos governos estaduais, conseguiu uma votação expressiva para presidente, mas já havia um processo de desgaste em todo o país do PT, e o Nordeste, até 2014, se manteve alinhado. Em 2018, esse alinhamento permanece, mas já não é pelas benesses do governo federal, porque  o presidente já não era do PT. O presidente era Michel Temer. Aí é importante saber se há uma recusa do povo nordestino à figura de Jair Bolsonaro, por ele ter as características que tem e por ser alguém que veio dando declarações anti-nordestinas ao longo de toda a vida, declarações racistas… e é importante dizer que, muitos lugares do Nordeste tem uma população predominantemente afrodescendente, e também indígena, no caso do Maranhão, muito especificamente”
.

Em 2018, a Carta Capital, publicou uma matéria intitulada Bolsonaro em 25 frases polêmicas, entre elas, algumas em que ofende negros e indígenas, e também afirma sua aversão ao sistema de cotas. Em fevereiro deste ano, a CUT liberou uma matéria em que falava de pesquisas de intenção de voto, e já apontava a rejeição do atual presidente entre os nordestinos, diante de suas declarações xenofóbicas. 

Bolsonaro tem um histórico de declarações que certamente provoca incômodo no nordestino e daí essa recusa, que por exemplo, não tem no sul, que tem uma formação histórica etnicamente diferente. Tem toda uma forte influência da imigração e lugares que tem esse discurso, que tem esse fluxo de imigração estrangeira. Tem também um discurso meritocrático, que normalmente é identificado com a direita, e por um enviesamento ideológico, o sul do país encontra no bolsonarismo um discurso que acaba sendo uma correia de transmissão para sua própria formação histórica. E aí esse quadro vai naturalmente se consolidar no mapa eleitoral”, afirma o professor, Matheus Silveira.  

Foto de capa: MesquitaFMS

* Essa matéria é um artigo de opinião organizado pela redação do Site Coreto em colaboração com o professor doutor Matheus Silveira (Uesb).

Relacionados

A dicotomia da política poçõense 

A ignóbil politicagem à la Brasil

Quem ganha e quem perde com a polarização política nas eleições municipais de Poções?

Pular para o conteúdo