Mudanças na estrutura da Festa do Divino geram inseguranças em vendedores e artesãos

Por Daniela Palmeira
Publicado em 19/05/2023

“É um trabalho de amor, feito com amor”, conta Nilma Matos sobre a sua função como artesã. Há oito anos, ela começou a investir em sua arte e comercializá-la, por entender que essa produção é capaz de transmitir boas energias, tanto para ela, quanto para seus consumidores. Desde sabonetes, velas aromáticas e águas para lençóis, Nilma Matos faz tudo de forma artesanal, com as próprias mãos. Para ela, é uma alegria muito grande manusear ervas e produtos naturais e ao fim do processo ver cada objeto tomando forma. Além disso, o sentimento de que está cuidando das pessoas ao oferecer seus produtos, é também o que gera inspiração para a artesã continuar.

Velas produzidas por Nilma Matos

Por acreditar na potência do sentimento que vem da arte, Nilma Matos faz parte da coordenação do grupo Interarte. Hoje, o grupo de pouco mais de um ano reúne 50 artesãos de Poções que se organizam para trabalhar em prol da valorização do artesanato no município. Um dos princípios do grupo é a diversidade, pois incorpora todo tipo de arte e pessoas que veem o fazer artístico com compromisso e amor. Para Nilma o esperado é que o grupo cresça em colaboradores e possa chegar a 80 ou 100 pessoas, pois ela percebe que ainda há, em Poções, muitos artesãos esperando por uma chance de mostrar o seu trabalho. “Tem muito artesanato parado, muito artesão desacreditado e aí de um ano pra cá eles estão achando uma forma de viver o artesanato”.

Jurandí Silva é pintor e integrante do grupo Interarte desde o começo. Já com alguns anos de experiência na conta trabalhando com arte em Poções, ele sabe que, apesar do clichê, a união faz a força. Contudo, muito anterior a isso, há 15 anos, a trajetória de Jurandi Silva pela pintura começou pela inspiração. Um dia, encontrou ao acaso um quadro de autoria do seu irmão, o quadro fascinou Jurandí Silva de tal forma, que ele fez uma promessa: iria pintar o mesmo quadro, para quem sabe um dia mostrar ao irmão, que morava em outro estado. Mas, a partir dessa pintura, Jurandí Silva se apaixonou pela arte e muitos outros quadros vieram depois. É com muito orgulho que ele conta sobre as exposições que participou e de suas obras espalhadas por diferentes lugares do Brasil. 

Distante dos rumos artísticos, Noilson França conhece a dinâmica poçoense por outros olhos: os de vendedor ambulante. Começou a trabalhar desde muito novo como vendedor, no começo ajudando o pai. Depois de alguns anos, aprendendo os segredos e caminhos que cada ofício guarda, herdou do pai a profissão. Noilson França conta que já trabalha por conta própria há 15 anos, vendendo principalmente bebidas e algodão doce. No entanto, a profissão não foi apenas escolha ou influência, Noilson França entende como consequência da sua realidade. “Não deu pra seguir faculdade. Aí eu engajei num ramo que eu já estava”, diz. 

Apesar de trabalharem em profissões e áreas diferentes, Nilma, Jurandí e Noilson, compartilham algo em comum, a necessidade de vender seus produtos. Por isso, aguardam com semelhante ansiedade e expectativa, o período do ano em que as vendas acontecem de forma diferente da qual estão acostumados na pacata rotina do município de Poções.

Festa do Divino e o impacto econômico em Poções

“O impacto de uma festa do divino é muito grande na cidade”, relata o coordenador de cultura e membro da comissão da festa, Gildásio Júnior. Ainda que as pessoas não trabalhem diretamente na organização e estrutura da festa, a repercussão do evento acaba movimentando os mais diversos setores, como vestuário, estética, transporte e hotelaria. Por isso, Gildásio Júnior explica que cada detalhe da organização da festa deve ser pensado com muita atenção, pois além de ser um evento histórico e cultural da cidade, tem grande influência econômica.

Luciana Oliveira já vivenciou o efeito do evento nas vendas. Ela teve sua primeira experiência na Mostra Cultural de 2014, onde vendeu caldos e chocolate quente. O movimento e receptividade do público a surpreendeu, deixando com ela mais do que satisfação, mas a vontade de abrir um negócio. Desse contexto nasceu O Butiquim, que inicialmente seria uma casa de caldos, no entanto acabou virando um bar. “As coisas foram se transformando, foram se moldando de acordo com a clientela”, conta Luciana Oliveira. 

Em 2015 Luciana Oliveira participou, pela primeira vez, da festa com O Butiquim na ativa. “Foi uma experiência muito massa para mim”, relembra. A partir desse período ela percebeu que o bar se tornou um espaço “extra Festa do Divino”, por já ter uma identidade própria e um público mais segmentado.Nos anos seguintes ela chegou a fazer uma parceria com a Coordenação de Cultura, para montar, em frente ao bar, uma área alternativa com bandas de rock. Enquanto o bar estava em funcionamento, o período da Festa do Divino rendeu bons momentos. Para Luciana Oliveira, tudo isso só reforça como essa época é importante para a economia local. “Acho que é o período mais esperado por todo o comércio, eles ficam aguardando mesmo por esse período”.

Todo ano a espera pela festa é a mesma, cheia de esperança. Jurandí Silva começou a expor seus trabalhos na Mostra Cultural desde o começo da sua carreira de pintor e sempre fez questão de participar. Esse ano ele já está finalizando as últimas obras que irão para a exposição, a fim de conquistar novos clientes e apreciadores da sua arte. “Justamente nessa época é a melhor oportunidade que a gente tem”. Essa visibilidade é algo que impulsiona o trabalho de Jurandí Silva, bem como o de Nilma Matos, pois durante esse período suas vendas aumentam. 

Acervo das pinturas de Jurandí Silva

Além disso, tanto Nilma quanto Jurandí, têm expectativas altas para o evento esse ano, pois acreditam que as atrações tanto dos palcos principais, quanto da própria Mostra Cultural, podem atrair um público ainda maior, da cidade e das regiões vizinhas. “Vendendo bem ele [o artesão] pode duplicar o seu material e conseguir uma renda extra, uma independência financeira”, completa Nilma.

A Festa do Divino também é um período especial para Noilson França, ainda que esteja acostumado a vender seus produtos em eventos de outras cidades, nada se compara a estar em casa. “Apesar da gente já trabalhar na região, nas outras festas, mas a Festa do Divino é uma festa diferenciada. Uma festa que todo mundo, todo camelô tem vontade de trabalhar”. Por isso, as expectativas para esse ano são positivas, pois para o vendedor esse é o primeiro passo para que as coisas deem certo. No entanto, ele entende que alguns fatores podem ter maior ou menor influência sobre o seu trabalho, como é o caso das atrações e o modo como a festa é organizada pela gestão.

Noilson França

Novos arranjos para a Festa do Divino em 2023

Esse ano a festa acontecerá do dia 19 à 28 de maio. A prefeitura já confirmou as atrações principais, com nomes como Solange Almeida, Leo Santana, Zezo, Rogerinho e Trio da Huanna. A programação da Mostra Cultural também já foi divulgada, contando com apresentações de dança, música e teatro de artistas da terra e da região, além da tradicional feira de artesanato. A mostra acontecerá nos dias 19, 20 e 21 de maio. Contudo, nesta edição a festa passará por grandes mudanças. “Talvez seja uma das mudanças mais radicais que aconteceu na festa nos últimos 10 anos”, conta Gildásio Júnior.

Como parte da comissão responsável pelas principais decisões da festa, Gildásio Júnior diz que desde o ano passado, a ideia de intervir na estrutura foi algo discutido. Isso porque, a comissão entende que a cada ano o evento fica maior, atraindo mais pessoas, produtos e serviços. Diante disso, ele diz que é preciso que haja um gerenciamento criterioso, pois a estrutura na qual a festa há muitos anos é organizada, já não comporta esse crescimento. “A festa está crescendo e a gente precisa acompanhar e evoluir também nesse processo”, destaca o coordenador de cultura.

Nesse sentido, a solução encontrada pela comissão para tentar alcançar o objetivo de um evento bem estruturado, foi a de dividir a festa em setores. Ou seja, dentre as barracas de alimentos, coolers e isopores de bebidas, artesanatos e exposições que farão parte da Mostra Cultural, cada um terá seu lugar específico dentro do circuito da festa. O Jardim dos Pássaros, será a praça de alimentação e a Mostra Cultural acontecerá na travessa Coronel Raimundo Pereira de Magalhães. Para Gildásio Júnior, setorizar os serviços pode ser uma forma de potencializar as vendas, para que ocorram da melhor forma possível.

Em reuniões promovidas pela prefeitura para cadastro dos vendedores, também foi explicado o que iria mudar e como essa nova estrutura seria implementada. Ainda assim, a decisão da comissão desagradou muitos vendedores, especialmente aqueles que durantes vários anos seguidos, já tinham um lugar determinado para montar suas barracas. É o caso da barraca do Acarajé da Cristina, que se pronunciou por meio de uma nota em suas redes sociais. 

A empresa informou aos clientes que após 28 anos trabalhando no pavilhão da festa, devido a organização desse ano e a escolha de “remanejar os pontos do segmento alimentício”, não seria possível manter a tradição. Como consequência dessa mudança, a empresa informou que precisou descontratar nove funcionários e diz que não será possível fazer novas contratações. Apesar disso, o serviço do Acarajé da Cristina funcionará durante a festa no seu ponto fixo, o quiosque localizado em frente ao Sine Bahia.

Foto reprodução da internet

Além da insatisfação do público, também surgiram notícias falsas que associavam o nome da vereadora Larissa Laranjeira (PCdoB) à decisão de mudança das barracas na festa. Em um vídeo publicado em suas redes sociais, a vereadora afirma que as deliberações a respeito da organização e disposição das barracas no circuito da festa, não fazem parte de suas atribuições. Ela reforça também que os assuntos que dizem respeito à estrutura do evento, são de responsabilidade da comissão.

Desse modo, instalou-se entre os comerciantes e vendedores um clima de insegurança em relação ao modo como seus trabalho seriam desenvolvidos. Gildásio Júnior defende que a comissão acredita que essa mudança pode, de fato, trazer melhorias para todos, mas que é compreensível o receio de aderir à nova estrutura. “A festa vem crescendo, as mudanças precisam acontecer em algum momento. Então a gente entende que as pessoas fiquem com medo e eu sou solidário a esse receio das pessoas, de fato é um risco. Mas a gente acredita nesse formato que estamos construindo”.

Outra questão que gerou incômodo e críticas entre os vendedores, e também em parte da população nas redes sociais foi a parceria entre a prefeitura e a Brasil Kirin, antiga Schincariol, marca que atualmente pertence ao grupo Heineken. A prefeitura fechou um contrato de exclusividade com a marca e durante a festa os vendedores cadastrados deverão vender cervejas da parceira, entre elas Heineken, Devassa, Schin e Amstel. Gildásio explica que a escolha faz parte das negociações entre a comissão da festa e a empresa. Segundo o coordenador, como parte das negociações, a empresa também fez investimentos na festa, o que ajudou a reduzir alguns custos.

Para Noilson França, a parceria é motivo de preocupação. Por já estar acostumado a trabalhar vendendo bebidas na cidade, ele percebe que as opções em geral, não favorecem o gosto de parte do público local. Noilson França acredita que esse é um fator que pode impactar diretamente em suas vendas. Ele leva em conta também que o período pós-pandêmico tornou a situação econômica de muitas pessoas, mais complexa e bebidas com o valor acima da média, provavelmente não serão a principal escolha.

  Já no que diz respeito a Mostra Cultural, a principal mudança foi o deslocamento do evento para outro local. Além disso, esse ano houve um cuidado maior com a produção da mostra, diferente do ano passado, como relata Luciana Oliveira. “Ano passado colocaram eles lá na Praça do Coreto, mas a gestão não deu nenhuma assistência, deixaram eles largados lá”.  Em vista disso, a perspectiva de ir para outro lugar e ficar sem uma estrutura adequada foi um receio dos artesãos. 

A alternativa da comissão para conseguir se aproximar dessas pessoas, e garantir total apoio no evento, foi por meio do diálogo. “A gente está fazendo esses encontros grandes, já teve encontro também com grupos menores, então estamos apostando realmente nesse diálogo, porque é novo para todo mundo”, explica Gildásio Júnior. 

Para Jurandí Silva as ideias expostas nas reuniões foram boas e realmente podem valorizar o trabalho dos artesãos da cidade. Entretanto, há um receio e inseguranças de como essas novas decisões serão colocadas em prática. Ainda assim, Jurandí Silva mantém as esperanças de que o impacto pode ser positivo. “Na festa deste ano acreditamos que seja melhor, justamente porque eles [a comissão] têm uma organização melhor do que o ano passado.”

Nilma Matos também acredita que esse ano a festa está melhor estruturada, e que a produção da Mostra Cultural tomou algumas decisões pensando diretamente no artesanato. “Isso é importante demais para a gente, porque o artesão se sentiu excluído durante muito tempo, e precisamos, mais do que nunca, de um olhar de carinho.”

Fotos: Arquivo pessoal

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