Violência obstétrica: relatos de mães poçoenses

Por Nataly Leoni
Publicado em 12/08/2023

O parto é um evento fisiológico e natural.  Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, cada trabalho de parto e cada nascimento são únicos e seguem ritmos diferentes que devem ser respeitados. Para muitas mulheres, o parto é um momento único que será lembrado para toda a vida, mas essas lembranças nem sempre serão agradáveis e, em muitos casos, podem ser acompanhadas de traumas. Há 20 anos, Luciana Oliveira entrava em trabalho de parto da sua filha mais velha. Na época, ela tinha pouco mais de 20 anos e não possuía conhecimentos a respeito dos procedimentos de um parto.

Em 2002, ano de nascimento de sua primeira filha, o hospital de Poções não oferecia uma estrutura para que as mulheres se sentissem seguras em ter seus filhos na cidade. Por isso, ao sentir as primeiras dores que indicavam o parto, pela manhã, Luciana Oliveira resolveu se encaminhar para um dos hospitais de Vitória da Conquista, apenas para descobrir, depois do exame de toque, que era preciso esperar um pouco mais. “Inexperiência, ansiedade e medo”, foi o que fez Luciana Oliveira voltar ao hospital pouco tempo depois e ser submetida novamente, ao exame do toque para verificar se a dilatação estava ocorrendo.

As idas e vindas ao hospital seguiram ao longo do dia e com elas os vários exames de toque até que, “um dos médicos que fez o toque, no momento, rompeu a minha bolsa, e nesse processo de romper a bolsa, não tem mais o que esperar. Então quando já estava anoitecendo, eles me colocaram na sala de pré-parto.” As horas seguintes foram de muitas dores e exaustão. Até então, Luciana Oliveira ainda não havia sido atendida por um obstetra e os médicos presentes tentaram realizar o parto. No entanto, ainda não era o momento para o nascimento da criança.  

Mais tarde, ao ter o primeiro contato com um obstetra e ser examinada depois de muitas horas em trabalho de parto, Luciana Oliveira foi encaminhada para a cirurgia, mesmo após a constatação do médico de que estava tudo bem com ela e com o bebê. No momento da injeção local, que antecede a anestesia, Luciana conta que já estava nervosa e tremendo muito por conta da situação. Após três tentativas falhas de aplicação da injeção, Luciana Oliveira lembra o que ouviu da enfermeira responsável. “Se você não se controlar, eu vou ter que lhe sedar e você não vai ver nada do parto do seu filho”.  Naquele momento, ela diz que se esforçou para ficar na posição correta e com o corpo mais estável possível, mas ao mesmo tempo se sentiu coagida. “Ela falou como se eu estivesse tendo um ataque de histeria.” Nas horas seguintes a cesárea foi realizada e minutos antes da meia noite, Luciana deu à luz a sua filha.

Anos depois, Luciana Oliveira, ao ter contato com outras mães que também haviam passado por experiências semelhantes, ou até mesmo mais graves, entendeu que havia sido vítima de violência obstétrica. 

A violência obstétrica constitui como uma das formas de agressão direcionada às mulheres e pode ocorrer durante o pré-natal, o parto e o pós-parto. Essa violência se manifesta por meio do desrespeito, maus-tratos, agressões morais, verbais, físicas, psicológicas e até violência sexual por parte dos profissionais de saúde. Qualquer ação que viole os direitos legalmente garantidos à mulher durante o processo de parto é classificada como violência obstétrica.

Segundo dados coletados em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre violência no parto. De acordo com o Ministério da Saúde, as intervenções médicas durante o parto são a principal causa de mortalidade materna e neonatal. De acordo com a pesquisa feita em 2019 com 555 mulheres gestantes, 12,6% das mulheres alegaram já ter sofrido algum tipo de violência. Entre essas mulheres, o número maior de casos de violência esteve associado a menor renda, estado civil e ausência de companheiro. Além disso, foram observadas a separação precoce do bebê no pós-parto e a realização da manobra de Kristeller, técnica utilizada para acelerar o parto, na qual aplica-se pressão na parte superior do útero. Essa técnica  não é mais recomendada, pois pode trazer consequências para a vida da mulher e da criança, além de não ter eficácia comprovadas.  

A violência também está na desinformação 

O termo “violência obstétrica” refere-se não só a negligências, ações e intervenções dos profissionais de saúde, mas também a falhas na estrutura de hospitais, sejam privados ou públicos e no sistema de saúde como um todo. Durante muito tempo e até mesmo nos dias atuais,  muitas mulheres acreditaram que o tratamento que tiveram durante o parto foi algo normal, quando na verdade foram vítimas de uma violência sistêmica e, muitas vezes, ignorada.

Para Cíntia Silva, que atualmente realiza o trabalho de doula, educadora perinatal e reikiana, a maioria das mulheres que ela convive ainda não tem noção do que é a violência obstétrica. “Em muitos casos quando estou passando informações a respeito do que pode acontecer durante um parto que é legal e o que seria violência, elas percebem que passaram pela violência obstétrica. Até então, elas achavam que aquilo era totalmente normal.”     

A violência engloba também a falta de informações adequadas, a não participação ativa da mulher nas decisões sobre seu próprio corpo e o desrespeito a sua autonomia e dignidade. Muitas vezes, as mulheres são submetidas a procedimentos invasivos sem consentimento, sendo tratadas como meros corpos em processo de reprodução que não estão em condições de tomar decisões. “As escolhas devem ser delas, não do médico”, diz Cíntia Silva. 

Cíntia Silva, doula

Para que a mulher seja de fato ouvida nesse momento, é necessário que ela tenha acesso a informações a respeito de todos esses processos. A médica obstetra e ginecologista Thaís Lin enfatiza a importância da informação no combate a casos de violência obstétrica. “Precisamos nos informar. Nós precisamos ser informadas sobre os processos do nascimento para saber o que esperar e é preciso saber que a intervenção só é necessária em alguns casos.” 

O acesso à informação é de extrema importância nesses casos para que a mulher conheça seus direitos, saiba reconhecer a violência e procurar ajuda. Hoje, Luciana Oliveira acredita que se tivesse sido devidamente informada, suas experiências de trabalho de parto teriam sido diferentes. “Eu já estava a mais de 12 horas em trabalho de parto, sentindo dor,  já estava assustada porque não tinha a companhia de ninguém, era muito jovem e inexperiente com tudo. No SUS (Sistema único de Saúde) eles só faziam o acompanhamento, então não tive orientação nenhuma, nem do que poderia acontecer, nem do parto que poderia optar”, conta.

Assim como Luciana Oliveira, Cíntia Silva também passou por situação de violência durante o trabalho de parto e também não tinha consciência naquele momento. Na época, Cíntia Silva tinha 18 anos e foi para o hospital pois a bolsa havia estourado, mas ela ainda não estava em trabalho de parto. Ela conta que passou por muitos exames de toque. “Eles não pediam licença, não falavam, não informavam nada, eram toques dolorosos […] eu não entendia porque eu sentia tanta dor, não só dor física, uma dor de dentro, de me sentir violada”. A forma que foram feitos os repetidos exames causaram em Cíntia dores que perduraram por vários meses após o parto.          

Cíntia ressalta que assim como aconteceu com ela, muitas outras mulheres acabam sentindo a dor que ela sentiu e não entendem o porquê. “Ela vai se sentir ferida? Vai. Mas vai carregar aquela dor para o resto da vida sem saber se o que ela está sentindo é sério, é verdadeiro mesmo, ou se está fantasiando”, afirma. Hoje Cíntia se dedica a estudar e se atualizar para ajudar outras mulheres durante a gestação, no parto e no pós-parto. “Trago uma composição de informação e amor para esse nascimento”, conta. 

Consequências psicológicas da violência obstétrica 

Mulheres como Luciana, Cíntia e muitas outras não sabiam que estavam sofrendo uma violência e acabaram acreditando que as situações pelas quais passaram eram normais, por isso não procuraram e nem a elas foi oferecido um acompanhamento psicológico. “É muito comum mulheres que sofreram violência obstétrica não conseguirem dar esse nome para aquela vivência e a violência só passa a ser violência de forma consciente para aquele sujeito no momento em que ele dá esse nome”, afirma a psicóloga que possui pesquisas voltadas para o tema da obstetrícia, Daniela Sampaio. Por isso, para Daniela Sampaio, a violência obstétrica pode causar diversas consequências psicológicas que podem até mesmo passar despercebidas pelas pessoas.

As consequências são reativas. “Eu costumo pensar na violência obstétrica com uma quebra de confiança. E você quando tem sua confiança quebrada você costuma ficar mais desconfiado. Então isso não atravessa um sujeito sem deixar suas marcas. Talvez essa mulher consiga voltar pro ponto de trabalho e viver sua vida como se nada tivesse acontecido. Mas pode ser que não”, afirma Daniela Sampaio. De acordo com a psicóloga, as consequências de um trauma como esse podem, ou não, se apresentar de diversas formas, como, estresse pós-traumático, ansiedade e uma angústia em relação ao tempo no hospital.

 Além disso, pode haver também uma dificuldade em buscar a assistência médica, como também com o planejamento familiar, pois há casos em que mulheres desistem de ser mães novamente por conta da experiência vivenciadas. Daniela Sampaio esclarece também que essas mulheres podem ter dificuldades no momento da amamentação por ser um evento fisiológico que também está ligado aos aspectos emocionais da mulher.

Daniela Sampaio, psicóloga

De acordo com a psicóloga, as consequências podem se estender ainda para dificuldades nas relações sexuais, na relação amorosa com o parceiro ou parceira, e até na criação de um vinculo com o bebê. 

“Acho que 99,9% das mulheres têm alguma angústia com relação ao momento do parto, é um momento desconhecido que ela só vai saber atravessando e é comum que a mulher tenha algum tipo de angústia”, afirma Daniela Sampaio. Para ela, sendo o parto um evento tão importante, ao ser carregado por uma violência, os efeitos disso podem afetar a mulher em muitas instâncias. Além das consequências já mencionadas, a psicóloga destaca o sentimento de impotência que pode ocorrer em situações de violência.  “O sentimento de impotência é muito carregado de culpa, é muito comum pessoas que passam por eventos de violência, em especial a violência obstétrica, experimentarem um sentimento de impotência e esse sentimento reverberar. Porque se você se sentir impotente ali no contexto de parto você pode se sentir impotente para amamentar, para cuidar, para fazer uma série de coisas”, conta.

O parto humanizado como uma forma de evitar a violência

O parto humanizado ou “assistência humanizada ao parto” como prefere chamar a obstetra Thaís Lin, que realiza essa assistência humanizada, está ligada ao tipo de assistência que a mulher recebe. “Tem muito mais a ver com a maneira que você é assistido, a maneira que você é tratado durante o processo. A autonomia da paciente é respeitada desde que, obviamente, não fira os outros princípios da bioética.”

Essa forma de assistência enxerga o parto como um evento natural com o objetivo de minimizar a realização de intervenções médicas. “O nosso corpo nasce sabendo parir. Então como é um evento fisiológico, precisa muito mais de cuidados do que de tratamento. Tratamento a gente fala para doença,  o parto não é doença. O parto é um processo que precisa de cuidados para que nós garantimos a segurança do processo de forma que atinja o objetivo final de um neném saudável.” A humanização tem seu enfoque na segurança, tanto da mãe, quanto do bebê, para que o parto ocorra da melhor forma possível.  

De acordo com Thaís Lin, não há necessidade de fazer toques repetitivos, que podem causar infecção materna e a paciente deve sempre ser informada a respeito dos processos. Para ela, cada mulher terá necessidades diferentes no momento do parto, e podem necessitar de alguma intervenção, mas elas não podem ser generalizadas. “É preciso individualizar cada paciente e ver a necessidade das intervenções. Assim ter o mínimo de intervenção de forma a realmente garantir um nascimento seguro”, diz.  

Thaís Lin, obstetra

Thaís Lin afirma que para todos os direitos previstos pelo parto humanizado, há respaldo científico que comprova sua importância para o momento do parto. “A paciente poder se alimentar, ter direito a um acompanhante, poder adotar as posições que ela quiser, ela não precisa ficar presa a uma cama, muito pelo contrário, a paciente que fica na posição vertical acelera o trabalho de parto em até uma hora. É recomendado se movimentar e ela não precisa ficar restrita ao leito”, informa Thaís Lin. Por isso, a obstetra indica a realização de um “plano de parto” pelas gestantes, para que elas estudem a respeito dos processos que envolvem o trabalho de parto e saibam escolher a melhor forma de passar por ele.

Onde buscar apoio?

Em Poções, a Lei nº 1303/2021 publicada em 31 de maio de 2021 determina a implantação de medidas de informação e proteção à  gestante e parturiente contra violência obstétrica na cidadeEssa lei tem como objetivo “proporcionar maior acesso à mulheres sobre seus direitos e autonomia para suas escolhas no momento do parto; normatiza a presença sempre que solicitada de Doulas durante o parto nos estabelecimentos de saúde do município”. Além disso, instituiu a Semana Municipal de Conscientização da Saúde da Mulher.

 Mesmo com a existência de leis, a violência obstétrica ainda necessita de divulgação, uma vez que ainda há uma grande quantidade de mulheres que não tem conhecimento dos seus direitos no pré-natal, durante o parto e no pós-parto. De acordo com a advogada do Centro de Apoio às Mulheres em Situação de Violência – CAMVI de Poções, Ludmille Amorim, nos dois anos de funcionamento do centro não houve nenhuma denúncia de violência obstétrica. Para ela, se houve algum caso, a vítima não quis denunciar e, geralmente, as denúncias não ocorrem por conta de  fatores diversos. “Tem o fator do medo de serem hostilizadas pela equipe médica, o receio pelo que a família vai pensar e também o medo da impunidade”, diz.

 A advogada conta que as medidas tomadas pelo CAMVI, caso recebam uma denúncia, são focadas no acolhimento. “Nossa intenção é que essa mulher seja acolhida, que ela consiga falar, porque essa mulher só quer ser ouvida, atendida, abraçada. […] A violência é tão banalizada que as mulheres não conseguem identificar quando estão sofrendo vítimas.” 

A mulher que for vítima de violência obstétrica pode procurar a ajuda do CAMVI, lá ela vai ser orientada, e se ela desejar o órgão pode registrar um Boletim de Ocorrência contra os profissionais de saúde que violaram seus direitos. Além disso, pode ser aplicada a responsabilidade civil, para que o profissional responda pelas suas ações e a ação criminal por negligência médica.

Ludmille Amorim, advogada

Para Ludmille Amorim, o primeiro passo para que essas mulheres denunciem a violência, é entender o que elas passaram. “Elas têm que entender que não são culpadas do que está acontecendo, o culpado é quem está violentando, é justamente o outro. Acho que essas mulheres tem que entender qual é o lugar que elas ocupam, que é de uma mãe que precisa ser acolhida, ser respeitada, e ter sua integridade física respeitada. Elas não devem temer denunciar e buscar sempre o conhecimento, buscar informação” afirma. É através da educação e da conscientização que a violência obstétrica pode ser minimizada para que o momento do parto seja seguro e respeitoso para as mulheres.

Fotos: Adobe stock e arquivos pessoal

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