Após 2 anos das enchentes que deixaram municípios do Sudoeste Baiano em estado de emergência, cidades seguem sem medidas preventivas e planejamento para enfrentar novas chuvas

Por Emily Chaves
Publicado em 16/01/2024

O fim dos anos de 2021 e 2022 foram angustiantes para diversos baianos que sofreram os impactos das fortes chuvas. Eram cinco horas da manhã em um dia de dezembro de 2021, o dia estava começando quando o pastor Isnar Sena de Carvalho, morador da cidade de Poções, ouviu uma pessoa batendo nas portas das casas dos moradores que habitam nas proximidades do curso das águas da Barragem do Açude, dizendo que a barragem havia estourado e que eles precisavam liberar as suas casas. “Nós ficamos desesperados, peguei o carro, botei a família e subi no lugar mais alto da cidade. Algumas pessoas fizeram isso, mas Deus abençoou que era um alarme falso, ou melhor, tinha quebrado, mas não tinha quebrado da forma que falaram”, relatou.

Isnar é pedreiro, autônomo, pastor de uma igreja evangélica e morador do bairro Primavera, bairro que fica distante da Barragem do Açude, mas uma parte fica no curso por onde passam as águas do rio. Ele lembra como as chuvas de dezembro de 2021 foram intensas e um momento de muito desespero, principalmente para ele que, na época, era novo no município. Segundo o pastor, tinha cerca de cinco anos que morava em Poções e nesse período nunca tinha visto algo parecido. “As barragens todas se encheram, tudo ao redor da cidade onde tinha uma barragem, um açude, um poço, estava tudo cheio, tudo sangrando já derramando água. E aí corria a notícia que a qualquer momento, a barragem que está dentro de Poções poderia romper”, contou. 

O pastor morava de aluguel em uma rua do bairro que já fica localizada próxima ao centro. Quando começou a chover, ele chegou a ver uma casa caindo, um homem sendo levado no esgoto que passa perto da casa onde morava. “Começamos entrar em desespero vendo o homem sendo levado pela água, dentro do esgoto. O pessoal conseguiu resgatar o homem ainda com vida, também vimos o carro sendo levado.” Ele acrescenta que somente via cenas como aquelas na televisão, em cidades longe e nunca imaginou que poderia estar acontecendo tão perto. 

Isnar Sena tem duas crianças gêmeas, que na época, tinham apenas sete anos, isso o fez entrar em desespero, pois havia uma ameaça de que a barragem se romperia e, passaria por cima da casa onde moravam. “A gente ficou dormindo quase acordado, era um olho fechado e outro aberto, naquela preocupação.” 

A Barragem do Açude está localizada no bairro Açude, na cidade de Poções-Ba, o reservatório possui mais de 3 km de extensão e foi construído no leito do Rio São José. Ao longo dos anos, o reservatório sofre com a falta de atenção e fiscalização do poder público. O reservatório, que em anos anteriores, segundo relatos de moradores nas redes sociais, teve seu volume de água reduzido devido ao período de escassez de chuvas, nos anos de 2021 e 2022 alcançou o volume máximo de água e transbordou. A barragem não comportou o volume das águas e como a sua estrutura não possui comportas, as águas começaram a sair pelas laterais, isso ocasionou o desgaste da estrutura de terra batida quebrando algumas partes.

Os altos volumes de chuvas na Bahia

Em 2021 e 2022, a Bahia registrou os maiores volumes de chuvas das últimas décadas. O Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) afirmou que no mês de dezembro, do primeiro ano, o estado apresentou o maior volume de chuvas dos últimos 60 anos. Após um ano se recuperando das tragédias de 2021, as chuvas voltaram a fazer estragos. Em 2022 a Bahia registrou 119.611 pessoas atingidas pelas chuvas, de acordo com a Superintendência de Proteção e Defesa Civil da Bahia (Sudec). 

Na lista das cidades afetadas pelos temporais estão Poções, Planalto e Barra do Choça. Em Poções, além dos problemas com a cheia da Barragem do Açude, ruas ficaram alagadas, houve quedas de casas, povoados ficaram interditados e sem acesso à algumas cidades, como Nova Canaã e Iguaí em que a BA 262 ficou bloqueada após deslizamentos de terras. 

O lavrador e morador da zona rural do Arame, Vanildo Barbosa Campos, lembra dos transtornos que a população da região vivenciou durante as fortes chuvas. Pela região passa o curso do Rio São José, além das águas oriundas da barragem de Morrinhos, que durante os anos de 2021 e 2022 também teve o aumento do volume das águas. Por isso, os moradores da zona rural onde mora ficaram ilhados. “Não tinha por onde nós passarmos. Ficamos sete dias sem ir para canto nenhum, foi muita água. Aqui nós temos três saídas para Poções, mas todas estavam interditadas, quebradas, muita água, muita chuva e muita lama”, conta o agricultor. 

Em suas redes sociais, o lavrador que é conhecido como Vanildo do Arame, compartilha vídeos onde ele mostra a realidade de quem vive na zona rural poçoense. Na época das chuvas, o agricultor fez muitos vlogs mostrando como ficou a situação das estradas, o volume de água presente no local e relatou sobre alguns desastres naturais. Em um dos seus vídeos ele mostra valetas sendo abertas para o escoamento das águas e para  não acumular lama nas estradas. 

Vanildo relata que recentemente, após muitas cobranças, a gestão da prefeitura fez algumas mudanças na estrada, passou a máquina com cascalho e fez algumas bancadas de cimento para a água passar por baixo. Segundo o morador, foi possível ver melhora, mas ainda não considera ser suficiente para aguentar o volume de água que passa por esse caminho quando as chuvas se intensificam. “Para eles fazerem isso foi muita cobrança, eu ligava para rádio cobrando, na câmara de vereadores, o povo cobrava também, nós sempre cobrando, cobrando, até que eles fizeram”, conta. 

Mesmo com a construção da ponte com manilha de concreto, o morador relata preocupação para as próximas chuvas, pois, de acordo com ele, a água que passa pela estrada vem do Açude de Poções e da região onde tem barragens. “Eu acredito que para resolver esse problema da ponte era necessário fazer umas três pontes de três metros”, afirmou o morador.  

Durante as chuvas, a prefeitura alertou os moradores do risco de rompimento da Barragem do Açude. Na época, a gestão publicou um vídeo com um comunicado onde relatava receber muitos vídeos que não eram verdadeiros sobre o acontecido, mas que a prefeitura estava tomando as medidas preventivas emergenciais, como o Plano de Contingência. No comunicado, alertaram principalmente os moradores do Bairro do Açude, Centro, Primavera e Santa Cecília, pois segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a mancha vermelha, que indicava risco de alagamento caso a barragem estourasse, cobria esses bairros

Moradores da cidade de Planalto também passaram por momentos difíceis durante as fortes chuvas que atingiram a Bahia nos últimos anos. Uelton Cordeiro Moreno, morador do Povoado de Parafuso, em Planalto, contou que nos três últimos meses de 2021, o município foi marcado por um grande volume de chuva, de grande intensidade. Além de ser chuvas contínuas, trouxe muitos problemas tanto nas áreas urbanas quanto na área rurais. “Na área urbana, alagamentos foram um dos maiores transtornos, algumas casas construídas em local mais baixo onde não tem como a água escoar ficaram totalmente submersas”, relatou. 

Segundo Uelton Moreno, na zona rural os problemas foram ainda maiores. “Planalto é dividida em dois biomas: Caatinga e Zona da Mata. Na mata teve muito deslizamento de terra, estradas bloqueadas com quedas de barrancos, queda de árvores e pontes que foram arrancadas com a força da água e outras ficaram submersas com o grande aumento das águas nos rios”, descreveu. 

O agricultor conta que na caatinga os ribeirões transbordaram tanto que as estradas viraram rios de água corrente que arrancou lavouras, derrubou casas e deixou muitas famílias isoladas. “Em relação aos locais urbanos que alagaram, nada foi feito. Já nas estradas da mata, foi feita a retirada das terras onde houve bloqueio das estradas principais e alguns ramais, mas em muitos lugares nada foi recuperado ainda. Nas da caatinga demorou muito mais para começar a recuperação e há muitas estradas em condições precárias ainda, esperando obras de melhoramento.”

Casa submersa na cidade de Planalto, 2022Foto: Captura de tela reprodução da internet

Na cidade de Barra do Choça, as chuvas de dezembro de 2022 deixaram muitas ruas alagadas e muitas casas foram atingidas. Na Rua Rui Barbosa, no centro do município, carros foram levados e comércios ficaram inundados.

 Em um sábado, dia de feira livre na cidade de Barra do Choça, a empreendedora Elizete Cunha Gomes conta que já estava em casa quando a funcionária, que estava em sua loja, ligou informando que o comércio estava alagado e tinha perdido muita coisa. “Foi um gasto enorme, muito prejuízo. Uma chuva que ninguém esperava, a loja ficou uma situação muito triste, quando eu via minhas coisas ali perdidas, coisas que eu ainda estava com boleto pra pagar”, lembra. 

A comerciante relata que o prejuízo foi avaliado em torno de R$2.300,00 e a prefeitura não tomou nenhuma providência e não fez nenhuma visita à loja. Ela acredita que deveria ser estudado algum planejamento para preparar as ruas do centro de Barra do Choça para receber fortes volumes de água. Após um tempo, ela conseguiu recuperar o prejuízo, mas afirma ficar insegura com novas chuvas. “Tenho muito medo, meus móveis não estão suspensos, estou esperando um rapaz pra vir aqui resolver isso. Desde a época da chuva que ficou de vir, ainda não veio. Toda vez eu cobro. Mas eu tenho muito medo”, afirmou. 

 Assim como Vanildo, o pastor Isnar também se preocupa com as altas temperaturas, pois a chuva pode vir em alta velocidade novamente e a cidade não está preparada. Isnar acredita que a prefeitura precisa tomar medidas para melhorar a qualidade de vida da população de Poções. “A prefeitura tem feito muitas coisas aqui, como calçamento nas ruas, mas em relação a chuva, uma possível inundação novamente, essas calçadas vão por água abaixo água. Na época arrancou muitas calçadas, muitas ruas que eram calçadas, a água levou mesmo, as pedras levou tudo. Então, eu acho que eles deveriam ter se preocupado com as barragens”.

Na chuva que caiu sobre a cidade de Poções no início do mês de novembro e em dezembro de 2023, alguns dos transtornos voltaram aos moradores. A região central da cidade ficou com as ruas inundadas prejudicando o deslocamento, inclusive, dos alunos que estavam fazendo  a prova do primeiro dia do Enem 2023.

Planejamento preventivo contra impactos da chuva

A engenheira civil e especialista em geoprocessamento e georreferenciamento em estruturas e engenharia das estruturas, Camila Sotero,  afirma que a respeito do planejamento de drenagem, o que tem em Barra do Choça é um retrato de todo o cenário brasileiro. “As nossas cidades foram construídas, mas não houve um planejamento urbano dessa construção horizontal. E aí, por não ter um planejamento urbano, um dos principais estudos, que é o estudo de drenagem, ele acaba não acontecendo”, destaca. 

Segundo a engenheira, enquanto a cidade está crescendo, não existe esse problema tão visível, porque tem muito solo permeável. A cidade ainda não está toda impermeável, ainda não está toda asfaltada, os terrenos não estão todos construídos, “então, parte da água da chuva infiltra e desce no lençol freático e outra parte escoa. Conforme a cidade vai crescendo, você vai tendo a venda dos terrenos e as populações tendem a impermeabilizar o seu terreno 100%, tende a construir e colocar concreto e cimentar todo o seu terreno, você começa a reduzir a capacidade de infiltração de água no município”, explicou.

Camila esclarece que quando reduz a capacidade de infiltração, a água da chuva não tem como infiltrar, ela escoa e é isso que tem acontecido nas cidades que crescem sem planejamento. A cidade de Barra do Choça aumentou drasticamente nos últimos anos, impermeabilizando tanto as suas vias quanto os terrenos, e desse modo, impedindo a infiltração da água da chuva, consequentemente, a água percorre para os pontos mais baixos como o centro. “O que precisa ser feito é de fato o estudo da bacia hidrográfica para entender como é que caminha as águas aqui na nossa região de acordo com o estudo topográfico e fazer de fato o projeto de drenagem no município”, afirmou. 

O professor do Departamento de Geografia e coordenador da Estação Meteorológica da Universidade Estadual do Sudoeste Baiano – Uesb, Rosalve Lucas Marcelino, explica os fenômenos extremos La Ninã e El Niño, que causam mudanças no clima do planeta. “O El Niño reduz a quantidade de chuvas no planeta como um todo. Além disso, deixa uma distribuição desigual, ele bagunça a distribuição espacial geográfica da chuva. O La Ninã, é o oposto, ele aumenta muito a quantidade de chuvas e geralmente esses eventos extremos eles têm um período de recorrência, o período de repetição”. 

Segundo o professor, foi o que aconteceu nos últimos anos na Bahia, o La Ninã intensificou as chuvas na região e de acordo com ele é algo esperado, esses fenômenos tem certeza matemática que a cada determinado tempo irá chover na mesma proporção. “Até dezembro de 2021, ainda não havíamos registrado um volume de chuva tão alto, foram 414 milímetros naquele mês”, afirma. 

O professor explica que como os eventos climáticos são cíclicos e previstos, as prefeituras têm que ter esse planejamento estrutural para receber essas chuvas, por isso, na área de estudo para planejamento urbano, um dos trabalhos é estudar as áreas de risco de um município. Rosalve Marcelino reforça que o poder público não se preocupa com áreas de risco, mas é necessário um planejamento preventivo.  “Então, tipo assim, na cabeça deles o problema terminou e dá para cuidar lá na frente. Aí termina o mandato, vem outra gestão. E como não está chovendo, as ações preventivas não são levadas em conta”, ressalta.

Segundo Rosalve Marcelino, em relação à questão ambiental, a parte preventiva é essencial, pois é certeza matemática, que em 2030 vai ter outro Lá Niña do mesmo jeito e os gestores sabem disso ou deveriam saber disso. “Nós avisamos que vai acontecer do mesmo jeito e que vai alargar de novo, que vai passar por aquela rua, por aquele açude, que vai chegar na mesma marca de novo ou mais. E eles não tomam nenhuma providência”, relatou.  

As ações que devem ser tomadas, e conforme o professor, são prevenções como verificar no leito do rio se as vias estão desobstruídas, a cada ano fazer uma vistoria pelos canais onde a água vai passar. Afinal, o grande problema é o represamento das águas pela ação ou entupimento das bocas de esgoto. O lixo também acaba contribuindo para que entupa, porque a água vai passar por ali de qualquer maneira. “Não importa se a cidade cresça ou diminua, não pode colocar nada no caminho do rio, pois a água vai passar por lá e vai derrubar. Tem que fazer esse levantamento da quantidade de esgotos, de canaletas, canais de recepção de água e deixar o caminho livre para os rios”, concluiu. 

O Site Coreto entrou em contato com a Secretaria de Infraestrutura do município de Poções e marcou uma entrevista presencial, que foi cancelada por parte do secretário devido a um choque de agendas, em seguida, foram realizadas outras solicitações de entrevista mas não obtivemos respostas, também foi enviado um e-mail para Prefeitura do município, mas não houve respostas. Para a Secretaria de Infraestrutura de Barra do Choça, foi enviado um ofício solicitando uma entrevista, mas também não foi respondido.

Emily Chaves é estudante do 6º período do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Ela foi contemplada com a bolsa de reportagem do Site Coreto e supervisionada pelas jornalistas Leila Costa e Raquel Rocha.

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