A ética e o jornalismo: um dilema social que afeta a vida em sociedade

Na quarta-feira (05/04), o Brasil registrou, mais uma vez, um ataque a uma escola infantil em Blumenau, no Vale do Itajaí, em Santa Catarina (SC). De acordo a Polícia Militar, 4 crianças entre 3 e 7 anos foram vitimadas no ambiente escolar. O caso noticiado pela imprensa brasileira colocou em debate o aumento da violência nas escolas públicas e os limites éticos na cobertura jornalística envolvendo massacres. O ataque registrado na creche é o décimo ocorrido a uma instituição no Brasil nos últimos 8 meses e acendeu o alerta para a divulgação de dados que envolvem o nome do autor do crime.

O Grupo Globo anunciou no mesmo dia do acontecimento que mudou sua política de cobertura jornalística em relação aos massacres. Durante o Jornal Nacional, o apresentador William Bonner informou aos telespectadores que: “Os veículos do Grupo Globo tinham há anos como política publicar apenas uma única vez o nome e a foto de autores de massacres como o ocorrido em Blumenau. O objetivo sempre foi evitar dar fama aos assassinos para não inspirar autores de novos massacres. Essa política muda hoje e será ainda mais restritiva: o nome e a imagem de autores de ataques jamais serão publicados, assim como vídeos das ações”, destacou.

O jornal Estadão também publicou para os seus leitores na página do Instagram que: “[…] decidiu não publicar foto, vídeo, nome ou outras informações sobre o autor do ataque, embora ele seja maior de idade. Essa decisão segue recomendações de estudiosos em comunicação e violência. Pesquisas mostram que essa exposição pode levar a um efeito de contágio, de valorização e de estímulo do ato de violência em indivíduos e comunidades de ódio, o que resulta em novos casos. A visibilidade dos agressores é considerada como um ‘troféu’ dentro dessas redes”, informou em nota.

No dia 06 de abril de 2023, a Folha de São Paulo levantou um importante debate sobre as mudanças na imprensa brasileira para redefinir os limites da cobertura jornalística e evitar o efeito contágio. A reportagem escrita pela jornalista e mestre pela USP, Laura Mattos destacou que a Folha “[…] optou por publicar o nome e a foto do assassino (que tem 25 anos), ainda que sem destaque, por entender que há relevância jornalística”.

Os limites éticos na cobertura de ataques a escolas e creches no Brasil começaram a ganhar notoriedade no debate público depois que o país registrou no dia 13 de março de 2019 um massacre na escola Raul Brasil, em Suzano (SP), que deixou 10 mortos e 11 feridos. Naquele ano, a jornalista especializada em saúde, Cláudia Collucci, escreveu para a Folha de São Paulo que “a notoriedade dada pela mídia aos autores incentivaria outros massacres”. A coluna destacou que um dos estudos científicos publicados na revista Plos One, “encontrou evidências significativas de que tiroteios em escolas e assassinatos em massa envolvendo armas de fogo são incentivados por eventos semelhantes no passado”.

A pesquisa ainda alertou que a notoriedade do crime dada aos autores funciona como um fator motivacional para que esses crimes aconteçam, o que os levam a atingir um nível de fama que raramente alcançariam em suas vidas cotidianas. Essa notoriedade, além de promover uma espécie de recompensa ao autor, também funciona como um “chamado à ação” para que outras pessoas se sintam motivadas a realizar ataques dessa natureza, o que se convencionou a chamar de “efeito contágio”.

Nesse ínterim, cabe discutir como o jornalismo sofreu modificações e mudanças na cobertura desses acontecimentos. Em 2019, o Fantástico, que pertence ao Grupo Globo, dedicou mais de 11 minutos do seu programa de domingo na cobertura do massacre na escola em Suzano (SP), o nome dos autores do crime foram mencionados na reportagem e também na publicação da página do G1. A construção da reportagem incluiu fotos e vídeos do massacre no ambiente escolar, assim como “imagens exclusivas” do ataque. 

A decisão tomada pelo Grupo Globo, na última semana, representa um avanço para mudanças mais efetivas na produção jornalística para evitar a propagação do efeito contágio e a exploração do sensacionalismo como recurso para aumentar a audiência em programas de TV, em detrimento do sofrimento das vítimas e familiares. Nesse aspecto também é possível questionar por que o jornalismo no Brasil não possui um regulamento sobre a cobertura de fatos jornalísticos envolvendo ataques e massacres?

É necessário, primeiro, compreender como a atividade do profissional jornalista é regulada no Brasil. O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros só pode ser aplicado aos profissionais e não se estende às empresas e instituições públicas e privadas do país.

Hoje o Brasil não dispõe de uma lei específica para a imprensa. As atividades de comunicação passaram a ser regulamentadas no país pela Constituição de Federal de 1988 com base no Art.5º, que destaca como principais características da liberdade de imprensa no inciso IV “ livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, inciso V “é assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”, inciso X “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material, moral decorrente de sua violação” e no inciso XIV “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. 

Dessa forma, amparada pela a Constituição Federal, a cobertura jornalística tem o livre arbítrio para decidir os limites da informação e o entendimento do que é de interesse público. Em contrapartida, cabe ao jornalista seguir o Código Ética, que destaca como dever do profissional,  no capítulo II, inciso XV “defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias”, e no inciso V, é vedado ao jornalista “usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime”. O Código ainda destaca no capítulo III, inciso II, que o comunicador não pode “divulgar informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes”.

O jornalista Rogério Christofoletti, autor do livro Ética no Jornalismo, destaca que “consciente ou inconscientemente, firmamos um pacto de confiança com a mídia, porque acreditamos que o jornalismo é uma forma de narrativa do presente que tem correspondência com o que entendemos por realidade”. Para ele, “técnica e ética caminham juntas, envolvidas”. O autor ainda destaca que “O programa jornalístico só permanece no ar por anos porque tem audiência, ou seja, seus telespectadores nele acreditam” (CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no Jornalismo. Editora Pinsky Ltda, 2008, São Paulo).

É fato que a imprensa brasileira caminha em busca de mudanças significativas no campo da cobertura jornalística, mas ainda precisamos continuar vigilantes sobre a forma como consumimos notícia e compartilhamentos socialmente as informações. É válido questionar quão ético é expor familiares chorando diante da dor e do sofrimento da perda? O que muda no jornalismo se for acrescentado imagens exclusivas de corpos vitimados pela violência? Quanto vale o click da foto para estampar a primeira capa de um jornal destacando o autor do crime? Quantos ataques o Brasil ainda vai precisar enfrentar para que o jornalismo entenda que o limite da notícia consiste na credibilidade dos fatos e não no sensacionalismo construído?

Esse é um debate que não termina nessa coluna e precisamos ficar atentos na construção das narrativas dos grandes veículos de comunicação na busca para que a informação seja cada vez mais democrática, que respeite os limites da ética e busque cada vez mais por um jornalismo humano, credível, sensível às questões da vida em sociedade e comprometido com o combate à violência, jamais ocupando o lado oposto dos fatos incitando o ódio e a violência como mecanismo de poder e controle social.

Foto de Capa: Freepik

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