O ano era 2020, o mundo inteiro enfrentava e lidava com a dura realidade da pandemia da covid-19. Enquanto todos se isolavam e vivenciavam o medo e a dor da perda, Ruthy Souza (42 anos), uma missionária dedicada ao serviço religioso, teve um sonho que anunciava um desafio que enfrentaria logo à frente.
“Naquele sonho que eu tive, alguém dizia para mim que eu teria um câncer de mama. E eu dizia: ‘então eu vou morrer!’. Mas essa mesma pessoa dizia que eu não morreria”, narra Ruthy.
Entendendo o sonho como uma visão, ela, que realizava o autoexame com alguma frequência, passou a redobrar sua atenção e intensificou seu autoexame. “O autoexame foi um divisor na minha vida”, afirma.
No início de 2021, após realizar mais um autoexame, ela percebeu que estava com um nódulo na mama. Com a situação de calamidade pública, e a falta de atendimento nas unidades de saúde para lidar com questões mais específicas, Ruthy decidiu ligar para o posto de saúde do seu bairro e informar a situação.
“Eu fui no posto, a enfermeira fez o exame de toque e não sentia o nódulo, mas eu sentia, eu sabia que estava ali”. Quando retornou para o atendimento com o médico da unidade, após serem feitas perguntas tradicionais para identificar possíveis sintomas, Ruthy respondeu negativo para todas, já que não sentia nenhum outro sintoma nem conhecia casos de câncer de mama no histórico da sua família.
E foi então que se viu vítima da irresponsabilidade médica, que inclusive, coloca em risco a vida de inúmeras mulheres. “Ele disse para eu voltar para casa, que câncer de mama não era assim simples, e sequer me passou mamografia, porque na época eu estava com 38 anos, ainda não tinha idade obrigatória para a realização do exame”.
Ruthy Souza conta que o médico chegou a ironizar e fazer uma brincadeira com as campanhas realizadas em torno do Outubro Rosa. Mas como estava diante de um profissional da saúde, aceitou a recomendação.
Luciara dos Santos (33 anos), também enxerga o autoexame como uma das ações de autocuidado mais importantes que uma mulher pode fazer por si mesma. “Eu senti um caroço e fui fazer um exame. A melhor coisa é sempre fazer o toque da mama. A gente vê que no mês de outubro se fala muito sobre isso, e é importante levar isso a sério”, pontua.
Sobre o Outubro Rosa
Anualmente, campanhas mensais são desenvolvidas pensando no combate e conscientização em relação a inúmeras doenças que afetam toda a população. O Outubro Rosa é uma delas, um movimento internacional que visa conscientizar homens e mulheres – principalmente direcionado às mulheres – sobre o câncer de mama. O objetivo é reforçar a importância dos cuidados de prevenção à doença, serviços de diagnóstico e acesso aos tratamentos necessários para quem é acometido pela doença.
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Brasil, o câncer de mama é o segundo tipo que mais atinge mulheres, ficando atrás apenas do câncer de pele. Já a nível mundial, é o tipo que mais alcança mulheres. Em 2024, o país registrou 73,6 mil novos casos a cada 100 mil mulheres.
O que não é surpresa, já que muitas vezes não é levado a sério, é que 17% (Ministério da Saúde) dos casos podem ser evitados com cuidados preventivos e hábitos saudáveis. Por isso, campanhas como o Outubro Rosa tornam-se necessárias para reforçar essas medidas e chamar atenção para a gravidade da doença.
O diagnóstico lhe tira o “chão”
Foi só em 2022, um ano após receber o retorno negativo do primeiro médico, que Ruthy Souza procurou um profissional particular e recebeu o diagnóstico de câncer de mama. “Eu fiquei sem saber exatamente o que falar, não sabia como proceder. Além disso, fiquei muito preocupada porque meu filho era muito novo. Quando você recebe a notícia de que está com câncer independente da forma e de onde esteja, é um baque muito grande, você fica desestruturada, eu perdi meu chão”, relembra.
A experiência de receber um diagnóstico de câncer de mama também deixou Luciara dos Santos em choque, mesmo que apenas por alguns dias. “Parece que abriram um buraco embaixo de mim e eu afundei, a gente perde o chão na hora que descobre, mas não pode abaixar a cabeça. Parece que dá um branco e a gente não pensa em nada”.
Foi em 2023 que Luciara dos Santos começou sua jornada para vencer o câncer de mama, nesse mesmo período, Ruthy Souza já estava operada há quase um ano. Ambas realizaram cirurgia e maior parte do tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas destacam as dificuldades enfrentadas nas longas esperas por exames e atendimentos nos serviços públicos.
“Aqui é muito demorado para realizar os exames, eu fiz rifa para pagar boa parte dos exames iniciais, como a biópsia”, afirma Luciara. A lentidão da fila de espera, e o desespero de quem precisa lidar com a urgência de uma doença tão grave, não combinam, o que força muitas pessoas a buscarem serviços de saúde particulares mesmo sem condições.
“Quando eu fui na secretaria marcar o exame, estava fechando porque era época da festa de maio [Festa do Divino], e também me alertaram sobre a fila de espera, só que assim para quem recebe um diagnóstico desse não quer ouvir falar de fila de espera. Aí entra a importância de outras mulheres relatarem suas experiências, porque isso ampara outra mulher que tem um diagnóstico”, destaca Ruthy.
Após arcar com os custos de exames particulares, ela se lembrou de uma outra mulher que havia feito o tratamento pelo SUS no Hospital Aristides Maltez (HAM), em Salvador. E por isso, destaca a importância de mulheres que já enfrentaram o câncer de mama, compartilharem suas experiências, já que graças ao relato de uma outra mulher, pode procurar por um tratamento rápido e gratuito.
Um estudo, publicado pela Fundação do Câncer (2021), revela que 65,7% das mulheres com diagnóstico de câncer de mama esperam cerca de dois meses para começar o tratamento pelo SUS, e esse é o limite máximo de tempo recomendado pelos médicos para darem início ao tratamento.
E a importância do SUS nesses casos não se restringe apenas do momento do diagnóstico até a cirurgia, existe um longo processo de acompanhamento e revisões periódicas que devem ser feitas ao longo dos anos. Nesse caso, é importante garantir acesso aos exames após o período. No caso de Luciara dos Santos, que precisa fazer a mamografia periodicamente, precisa tirar recursos para pagar, já que não tem a idade obrigatória para fazer o exame de forma gratuita, mesmo sendo uma paciente que já teve o câncer.
“Pelo SUS, os exames são complicados, a mamografia na minha idade eles não libera de jeito nenhum. Eu já fui na secretaria, tentaram agendar, mas foi negado que só libera acima dos 40, não libera de jeito nenhum. Como se a doença atingisse só pessoas acima de 40 anos”, pontua.
Luciara dos Santos enfrenta uma outra dificuldade, desempregada desde que recebeu o diagnóstico e impossibilitada de trabalhar por conta do tratamento, está sem receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) do INSS devido ao longo prazo de espera para realização da perícia médica.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um salário mínimo mensal garantido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que pode ser solicitado à Previdência Social por pessoas com câncer que comprovem os requisitos.
A fé e a rede de apoio como suporte
A importância da fé, da família e dos amigos no enfrentamento do câncer de mama é algo que aparece com frequência nos depoimentos de mulheres que passaram por essa experiência, como Ruthy e Luciara, cujas histórias trazem exemplos de superação através do apoio emocional e espiritual.
A missionária compartilha que, desde o início, sua fé desempenhou um papel fundamental. Ao receber o diagnóstico, sua fé em Deus foi um pilar de força. Ela acredita que as promessas divinas lhe deram coragem para enfrentar o tratamento e continuar ministrando seu projeto com mulheres em sua comunidade. Para Ruthy, a fé não apenas lhe deu ânimo, mas foi também a razão pela qual ela acredita que a doença foi contida e não evoluiu rapidamente, mesmo após um ano sem diagnóstico. O suporte espiritual foi essencial para manter sua confiança em momentos de incerteza.
“Em 2022, eu comecei a trabalhar em um projeto com mulheres aqui em Poções, que hoje alcança, em média, 180 mulheres. E sempre houve uma preocupação em mim de ter um projeto específico para trabalhar com essas mulheres não só a questão espiritual, mas também no que diz respeito ao cuidado com a saúde”. Quando o projeto, que hoje alcança mulheres de todo o Estado da Bahia, foi colocado em prática, Ruthy não imaginava que seria acometida por um câncer de mama, mesmo diante do sonho que havia tido em 2020.
Para Ruthy Souza, o milagre divino foi a doença não ter se agravado tanto durante o período em que descobriu o nódulo, mesmo sendo desencorajada pelo médico a investigar um possível câncer. Algo inexplicável também para a médica que lhe acompanha, pois mesmo após esse período, o câncer ainda estava em estágio inicial e não foi necessário fazer a mastectomia, cirurgia de retirada da mama.
Além da fé, ela também enfatiza a importância da rede de apoio formada por amigos e família. Ruthy menciona que o apoio dessas pessoas foi fundamental para não se sentir sozinha, especialmente em momentos em que as palavras duras dos médicos poderiam ter abalado seu emocional. O suporte que recebeu ajudou a lidar com o peso do diagnóstico e manteve-a firme em sua jornada de cura.
De forma semelhante, Luciara dos Santos também destaca o apoio da família e de amigos durante seu processo. Embora tenha tido momentos de desânimo e vontade de desistir, foi o suporte contínuo de seu marido, familiares e amigos que a encorajou a continuar o tratamento. Luciara expressa como, em momentos de fraqueza, sua fé em Deus foi o que a sustentou, acreditando que sem essa fé ela não teria tido forças para superar os desafios. “Eu pensei em desistir, mas neste momento também pensei em minha filha e bati o joelho no chão e pedi muita força a Deus”, relembra.
Embora a jornada seja individual, mulheres que vivenciam a luta contra o câncer de mama se encontram em lugares comuns, em alguns aspectos. Tanto Ruthy quanto Luciara veem a fé, a família e os amigos como forças indispensáveis nesta batalha Essa rede de apoio, junto com a confiança na medicina e na espiritualidade, proporcionou a elas uma base emocional sólida para atravessar os momentos mais difíceis, mostrando que o enfrentamento do câncer vai além dos tratamentos médicos, estendendo-se ao cuidado emocional e espiritual.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, a cooperação entre espiritualidade e tratamento do câncer tem sido cada vez mais abordada nos estudos da medicina. Isso porque o suporte oferecido pela espiritualidade nas reflexões sobre sua condição e perspectiva para manter a resiliência, ajudam o paciente a manter o equilíbrio emocional, e consequentemente, reflete positivamente no quadro do paciente.
A espiritualidade, no entanto, não se resume apenas ao amparo religioso, pode estar associada a um estilo de vida, prática de fé, conexão com divindades ou com a natureza.