Artistas poçõenses resistem diante da  falta de incentivo à cultura

A falta de políticas públicas direcionadas à arte afeta artistas e promotores de cultura, principalmente aqueles independente.
Por Leila Costa
Publicado em 26/05/2022

A cidade de Poções possui uma expressividade cultural presente em vários campos artísticos caracterizados por coletivos e movimentos culturais independentes na dança, no teatro, na música e em culturas tradicionais que promovem e fortalecem o cenário artístico local.

No entanto, os artistas do município também enfrentam dificuldades relacionadas a financiamento e investimento em projetos culturais, situação que faz parte de um cenário nacional. Mesmo diante da grande pluralidade cultural no Brasil, o setor da cultura é fortemente atacado, sofrendo com desvalorização e falta de incentivos que possibilitem o desenvolvimento de suas atividades. Em 2020, o ministro da economia, Paulo Guedes, cortou R$36 milhões de reais de cinco órgãos ligados à pasta da Cultura. Já em 2021, ao fim de mais uma década, a cultura perdeu metade de seu orçamento federal, com o valor de R$1,77 bilhão previsto pela Lei Orçamentária Anual, em 2011 o valor do repasse para o extinto Ministério da Cultura foi de R$3,34 bilhões.

A falta de políticas públicas direcionadas à arte afeta artistas e promotores de cultura, principalmente aqueles que trabalham em regime independente. Com isso, se manter no cenário cultural tem sido um desafio de resistência para artistas da cidade ao longo dos anos.

Para o produtor cultural, ator e um dos fundadores do coletivo Resistência Cultural, Adalto Rocha, a desinformação atribuída ao setor cultural também é um elemento que inibe o desenvolvimento de ações. “Muitas vezes os gestores não enxergam no setor possibilidades de geração de renda e imaginam que cultura só produz gastos. Um grande erro pensar assim, pois a cultura está ligada ao bem-estar, educação, saúde, memória, desenvolvimento intelectual e social”, afirma.

O produtor conta que há uma contribuição por parte do governo municipal para os movimentos culturais, contudo essa contribuição é pequena e não é o ideal para suprir todas as demandas. “O que a gente busca geralmente é uma participação simbólica dentro da construção de políticas públicas que a gente imagina”.

Produções culturais exigem demandas e geram gastos e isso faz com que a questão financeira seja o principal empecilho para o desenvolvimento de atividades no setor. Para Jéssica Oliveira, atriz integrante do grupo de teatro Caroá e produtora cultural, a questão financeira sempre foi um um entrave para as produções teatrais que demandam investimentos altos, e muitas vezes, têm pouco retorno. A atriz, que há 11 anos atua no setor artístico do município, relata também que há dificuldade em conseguir colocar bilheterias que sejam suficientes para suprir os gastos e isso gera a dependência de patrocínios. “Nós não conseguimos colocar uma bilheteria muito alta, porque se não, não temos público, então nós dependemos, muitas vezes, de patrocínio. Nós temos um público bacana de teatro, um público fiel que a gente sabe mais ou menos quem vai estar nas apresentações de tudo, mas ainda falta a expansão”, diz.

Alguns grupos e coletivos ainda enfrentam preconceitos direcionados ao tipo de arte que fazem. O geógrafo Alan Conceição, músico integrante do terno de Reis São Sebastião da Estrelinhas, do bairro Bela Vista, conta que o grupo enfrenta, além das dificuldades como a falta de transporte para deslocamento intermunicipal e a falta de valorização, o preconceito. “Nossa cultura é popular e, dessa forma,  as pessoas não enxergam como uma forma de manifestação válida, há a discriminação pela forma como o terno de reis se manifesta, e por se assemelhar muito a questão afro-brasileiro”.

Jéssica Oliveira em cena de Spectrum

Foto: Antony Soares
Jéssica Oliveira em cena de Spectrum
Foto: Antony Soares

Para Alan Conceição, essa falta de valorização de uma tradição cultural secular acontece independente do governo que esteja em exercício, pois não existe um diálogo constante com a Coordenação de Cultura do município. Segundo ele, esse diálogo fica reservado apenas para as comemorações do dia seis de janeiro, quando é feita uma apresentação pública no centro da cidade. “O terno de reis ele fica esquecido  todo o resto do ano e quando está perto do dia seis de janeiro, que é o dia de Santo Reis, eles dão uma roupa para gente, quando eu digo eles é a coordenação de Cultura, e dá um cachê”, conta.

Há grupos que recebem do governo municipal um incentivo financeiro mensal, como é o caso da Associação de Capoeira Energia da Terra (ACET), comandada pelo Mestre Didi e pela atual presidente Juliana Silva. A associação faz eventos e promove aulas de capoeira na cidade desde o ano de 2002, e a partir de 2007 passou a receber uma subvenção social  do município. “Uma lei que se tornou Lei Orgânica do Município e tem uns 17 anos, mais ou menos, que a gente recebe atenção e é através dessa subvenção que a gente mantém o trabalho”, informa Mestre Didi. 

Alunos e mestre da Associação de Capoeira Energia da Terra
Foto: Arquivo pessoal
Alunos e mestre da Associação de Capoeira Energia da Terra
Foto: Arquivo pessoal

Através desse recurso, a Associação mantém o núcleo central que funciona no Clube Recreativo Social e tem mais três núcleos, um no bairro Alto da Vitória, um no bairro Bela Vista e outro no bairro Caladinho. Segundo o Mestre Didi, a associação recebe também uma contribuição de comerciários da cidade. “Alguns comerciantes que são padrinhos do projeto, todo mês contribuem com a quantia de 5, 10 ou 15 reais que junta o útil ao agradável e vai mantendo o trabalho”. 

De acordo Juliana Silva, o fato da Associação ser estruturada burocraticamente ajuda na obtenção de recursos. “Muitos grupos não conseguem recursos por falta do lado burocrático, que envolve documentação. Você tem que provar que realmente seu trabalho existe, e se você for só de boca falar, infelizmente a gente sabe que não vai conseguir”. 

Para Jessica Oliveira, a organização dos grupos é essencial para a conquista de direitos e espaços. Ela alerta para a falta de diálogo que pode dificultar as conquistas. “Eu acho que ainda falta dialogar melhor entre nós, e é dentro do mesmo setor, eu ainda sinto um distanciamento entre as pessoas de se organizar enquanto coletivo, enquanto movimentos mobilizadores culturais da cultura em geral”.

Mesmo o grupo sendo organizado, com toda a documentação e reconhecimento, ainda encontram dificuldades. Esse é o caso da Associação de Capoeira Energia da Terra. De acordo com o Mestre Didi, a associação planejava realizar o Encontro Nacional de Capoeira em 2022 na cidade, mas devido a falta de apoio suficiente para suprir as demandas, o evento não será realizado. “São 20 anos aqui em Poções e esse ano, pela primeira vez, a gente iria realizar o evento já legalizado, fazendo parte do calendário cultural do município. Eu realizo, há 20 anos, o evento solto, e agora que se tornou lei, eu não vou conseguir realizar”, relata. 

Alguns grupos também enfrentam dificuldades com a falta de um espaço físico para desenvolver suas atividades. Na cidade de Poções, embora existam espaços destinados à arte, não possui um Centro Cultural que possa acolher os diversos grupos.  

Jeferson B-boy J, integrante do grupo de dançarinos de Breaking, Detomicos Crew, relata que a falta de espaço físico é um fator que atrapalha o grupo. Embora o Hip-Hop seja conhecido como uma cultura de rua, Jefferson afirma que a falta de um lugar fixo complica a rotina de ensaios diários dos integrantes da Crew. “A gente tem o ponto que a gente treina na praça da Juventude, no anfiteatro, mas às vezes acontece de a gente chegar no espaço para treinar e tá acontecendo algum evento. O que acaba atrapalhando nossa rotina  de ensaios, porque a gente tem que ter essa diária fixa de treino”, conta o B-boy.

Pandemia da covid-19 e os novos desafios

Com a pandemia da Covid-19 que se instalou a partir de março de 2020, e consequentemente desencadeou a proibição de eventos presenciais, um dos setores mais atingidos foi a cultura. De acordo com uma pesquisa divulgada em janeiro deste ano, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2020 mais de 900 mil trabalhadores do setor cultural foram afetados pela pandemia.

Com isso, movimentos culturais ficaram sem fazer eventos e apresentações presenciais e tiveram que migrar para o online, no entanto, nem todos os grupos estavam preparados para os desafios e gastos que demandam o espaço online.

Grupos conseguiram se organizar e arrecadar fundos para prover cultura, participando de editais. No entanto, se inscrever nesses editais também foi um desafio enfrentado. Os editais, muitas vezes, são burocráticos e dificultam o processo. “Às vezes acontece da gente ficar sabendo e é bem depois ou não tentamos devido à burocracia”, relata Jefferson B-Boy.

“Nós fomos contemplados porque tem pessoas formadas, que tem um grau de escolaridade e consegue compreender essas coisas dos editais e tem facilidade com a tecnologia, mas a maioria não consegue, como o Terno de Reis que é uma cultura composta majoritariamente por pessoas idosas e pouco alfabetizadas que não tem esse acesso”, conta Alan Conceição, sobre participar de editais.  

Grupo São Sebastião das Estrelinhas
Foto: Vanessa Pacheco
Grupo São Sebastião das Estrelinhas
Foto: Vanessa Pacheco

Em Poções, artistas e grupos artísticos  foram contemplados com os benefícios da Lei Aldir Blanc. A lei Federal Aldir Blanc, foi sancionada em 29 de junho de 2020, em caráter emergencial, visando destinar a estados e municípios recursos para  apoio do setor cultural durante o período de calamidade pública causado pela pandemia da covid-19.

O município de Poções recebeu R$ 357.383, 26 oriundos da Aldir Blanc, o dinheiro foi repassado a grupos, artistas ou pequenas empresas da cidade que tiveram suas atividades interrompidas durante a pandemia. Segundo informações do Diário Oficial do Município, 24 projetos foram habilitados para receber o incentivo, e uma média de 600 profissionais da cultura foram beneficiados com incentivos da lei. 

Para a implementação da lei Aldir Blanc, o Conselho Municipal de Cultura realizou o cadastro de artistas, artesãos, fazedores de cultura, produtores culturais, mestres da cultura popular, agentes, trabalhadores da cultura em geral, grupos e entidades culturais. 

Para Jessica Oliveira, a organização foi fundamental para receber o incentivo. “Nós tivemos um retorno muito legal aqui no município, em muitos municípios o dinheiro veio e o município devolveu, retornou e foi redistribuído, mas no nosso município teve um destaque muito grande nesse sentido”.

Ao longo do ano de 2021, a Coordenação de Cultura, juntamente com o Conselho de Cultura realizaram reuniões setoriais com artistas poçõenses. Contudo, mesmo com essas reuniões e com o cadastro de artistas realizado pelo Conselho de Cultura, a Coordenação de Cultura informou que não há um mapeamento de quantos movimentos culturais existem no município. O representante da Coordenação de Cultura, Valderson Ferreira, conhecido como Chapolin, afirma que são mais de 2 mil artistas inscritos no cadastro cultural.

De acordo com Júlia Letícia, professora e Conselheira de Cultura, o cadastro não conseguiu atingir o macro do setor cultural. “A gente tem a dimensão de, entre grupos, bandas e núcleos  artísticos, tem 60 grupos instaurados. Já artistas incluídos no cadastro, na última resolução publicada, tínhamos 670 artistas, mas já temos novos cadastros que estão aguardando uma resolução posterior para divulgá-los no Diário Oficial e eles receberem a certificação”, explica.

Em 2021, membros do setor cultural poçõense participaram do edital Prêmio Cultura na Palma, lançado pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT). 12 projetos foram contemplados com o edital e quatro projetos ficaram em cadastro reserva.

Em outubro do mesmo ano, o mandato da vereadora Larissa Laranjeira (PCdoB – Poções), por meio do seu assessor, o produtor cultural Gildásio Júnior,  criou um grupo no Whatsapp para auxiliar os poçõenses a se inscreverem no edital.  

“Foi uma iniciativa muito bacana o grupo, foram divulgando e chamando os artistas para participar, e depois teve até momentos de explicação para facilitar algumas informações,  através de vídeos, que é mais simples. Eu acho que isso teve um impacto muito legal porque a gente conseguiu que muita gente daqui se inscrevesse”, expõe Jéssica Oliveira. 

Em 2022, foi aprovado na Câmara Municipal o Projeto de Lei Afonso Mantra. O projeto foi elaborado pelo Conselho Municipal de Cultura após a realização de  audiências públicas com a população. De acordo com informações do Conselho de Cultura, a Lei Afonso Mantra destinará, por meio de edital, 100 mil reais da receita do município para contemplar projetos artísticos de vários segmentos culturais e outros 20 mil reais para aquisição de equipamentos destinados ao uso coletivo dos artistas. 
A Lei que já foi aprovada, ainda não foi executada pelo município. “A Lei Afonso Manta é uma lei que abre um portal de um edital, por enquanto ela não tem esses editais, ela não tem essa formulação, porque  os editais eles vão ser lançados quando a gestão entender que é um momento”, explica Júlia Letícia.

Recursos para o setor e a falta do Fundo Municipal de Cultura

O município de Poções recebe uma verba destinada à cultura, por meio da Lei Orçamentária Anual (LOA), no entanto, no município não existe um Fundo Municipal de Cultura para que esse recurso seja repassado para a cultura, e por isso, ele pode ser realocado para outras áreas. 

De acordo com Júlia Letícia, o Conselho Municipal de Cultura tem como pauta a criação desse Fundo Municipal de Cultura, “porque existe a Lei do Fundo de Cultura, mas ela também precisa de reajuste para que o município possa gerir o próprio recurso, e assim, a gente possa conseguir fundos do Governo Federal”

No entanto, para a criação do Fundo de Cultura, é necessário que o município tenha o conselho de cultura, uma pasta de cultura e uma gerência pela qual o município receberá o repasse da LOA, “a gente ainda não tem esse gerenciamento e a gente precisa fazer isso para estar de fato ligado ao sistema Municipal de Cultura”, informa Júlia Letícia.

O representante cultural Valderson Ferreira (Chapolin), informou que a coordenação prefere que os artistas desenvolvam o projeto e assim ela possa dar o fomento, pois segundo ele, a função da coordenação é fomentar, não produzir. “Muitas pessoas pensam que a função de uma diretoria, coordenação de cultura é produzir eventos, não, nós temos a obrigação de fomentar”, diz.

Valderson Ferreira (Chapolin) contou que há um projeto para criar um centro cultural na cidade, mas ainda sem data para início. “Não chega a ser um grande centro, seria uma biblioteca e um auditório. Nós estamos estudando, estamos organizando essa parte com o engenheiro, documentação e tudo. A gente pretende fazer em homenagem ao nosso cineasta Fidélis Sarno”.

Os artistas poçõenses têm a expectativa de que com o fim das restrições em consequência da pandemia, o setor possa voltar a ser ativo e promover cultura. “Eu espero que o pessoal da cultura, no geral, possa voltar com força e se unir ainda mais, a gente sabe que não foi fácil para ninguém, mas a gente tem que ter força  e resistência para não desistir e incentivar aquele que está triste, desanimado a voltar”, diz Mestre Didi.

Foto de Capa: Antony Soares

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