Clandestinamente feliz

Por Andressa Oliveira
Publicado em 14/12/2022

A literatura é um caminho (incômodo) e transformador que permite ao leitor encontrar a si mesmo

Quantas vezes você já se encontrou ou se perdeu em um livro? Quantas histórias foram necessárias para você mudar a sua forma de ver o mundo, pensar diferente ou questionar um preconceito? Quantas vezes você foi clandestinamente feliz lendo um livro? E quando essa leitura é incômoda, você ainda continua lendo como se o livro fosse seu amante secreto?

Clarisse Lispector, escritora brasileira, nomeada pela literatura como alguém “decidida a desvendar as profundezas da alma”, publicou em 1971 o livro de contos Felicidade Clandestina. Com exatos 25 contos, a obra de Clarisse atravessa o cotidiano do leitor com uma escrita que desvenda o melhor e o pior de cada ser humano. Clarisse escreve sobre a felicidade, mas não uma felicidade qualquer. Para Clarisse a felicidade real precisa ser atravessada pelo olhar do outro e é nesse encontro cercado de humanidades, defeitos, faltas e imperfeições que nos descobrimos clandestinamente felizes.

No editorial de Cultura do jornal El País, em 2018, o colunista Alberto López destacou que “Clarice Lispector é considerada, junto com Guimarães Rosa, a grande escritora brasileira da segunda metade do século XX, graças ao seu estilo, entre a poesia e a prosa. Uma marca que enchia os detalhes cotidianos de espiritualidade e que se caracterizava por utilizar a primeira pessoa na narrativa. Não se parecia com ninguém, e sua visão não recorda nenhum movimento, embora pertença à terceira fase do modernismo brasileiro, da chamada Geração de 45”, declarou o colunista.

Em 1977, Clarice Lispector foi entrevistada por Júlio Lerner, repórter da TV Cultura. Essa participação – no programa “Panorama” – foi o único registro audiovisual da autora em vida. Durante a entrevista ela destacou: “eu só escrevo quando eu quero”. “Sou uma amadora e pretendo continuar sendo assim”. “Faço questão de não ser uma profissional para manter a minha liberdade”. É a partir dessa ausência, desse não lugar de pertencimento que a autora inicia o primeiro capítulo do livro com o mesmo título Felicidade Clandestina. Os textos de Clarisse são amplamente divulgados nas redes sociais, compartilhado à exaustão pelo público, sua célebre frase “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, permite a contemplação do amor e do vínculo que a leitura provoca nas pessoas, mas essa é só uma parte da história.

Lispector desenvolveu na escrita a arte de escrever sem nomear. Poucos são os personagens que ganham nomes em seus contos. É como se a autora deixasse um espaço para que cada leitor pudesse se enxergar em seus textos. Como na vida, Clarisse não escreve histórias com vilões ruins e mocinhos incríveis, sua escrita crua e por vezes sem sentimentalismo algum desperta para um encontro que só a literatura nos permite fazer, reconhecer em nós mesmos o tamanho da nossa capacidade em sermos mesquinhos, egoístas, prepotentes e mentirosos, na mesma proporção em que nos descobrimos amando e sendo amado, odiando e sendo odiado, manipulando as relações e sendo manipulados pelas outras relações, porque Clarisse escreve para gente como eu e você, que se perde, se reencontra e se perde de novo. Clarisse escreve não para os bons, mas para aqueles que se reconhecem na mudança, no caos do cotidiano, para gente que ri, que sofre, que chora, que se desespera só por um segundo para ser clandestinamente feliz.   

O texto de Clarisse que carrega no título a palavra Feliz e termina mostrando o amor de uma menina pelo o livro, começa assim:

“Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”.

Você se reconhece na personagem? ou no narrador?

Em um jogo descritivo, a história conta a relação de duas meninas na busca por encontrar a própria felicidade.

Uma era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. A outra era “imperdoavelmente bonita, esguia, alta, loira e de cabelos livres”.

A primeira tinha um pai dono de livraria. A segunda queria o livro que só a gorda, baixa e sardenta possuía. 

A primeira menina era excluída e abandonada a todo tipo de humilhação. A segunda possuía um grupo de amigas tão imperdoavelmente bonitas quanto ela mesma era. 

A primeira era uma estranha, conhecida apenas pelos seus excessos. Tudo nela era grande demais, feio demais, ruim demais, exceto pela grandeza de ter um pai dono de uma livraria. 

Estabeleceu-se assim um vínculo de desejo e vingança entre as duas. A primeira descobriu-se portadora de um artigo valioso, ela era dona do livro As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. A segunda descobriu que seu desejo era possuir o livro. 

A primeira percebeu em si mesma o poder de manipular a busca para que a segunda permanecesse gravitando seu espaço para suprir seu desejo constante pelo o objeto que possuía. Para manter o seu plano, a primeira decidiu que emprestaria o livro para a segunda, e assim, pelas ruas de Recife, a menina loura começou a buscar incessantemente pelo livro.

A cada vez que ia a casa da gorda, a menina loura recebia a negativa de que o livro já havia sido emprestado. Era necessário voltar no dia seguinte. Como para ela tudo o que importava era o seu desejo e a sua felicidade, a cada negativa recebida, seu desejo pelo livro aumentava.

“[…] guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas e não caí nenhuma vez”, relata a menina.

Entre as idas e vindas, as pequenas humilhações diárias tornaram – se insignificantes quando a mãe da primeira menina descobriu e encontrou a outra no portão de sua casa. Depois de explicada a confusão, a mãe deliberou que o livro fosse entregue imediatamente, justificando que o objeto sempre estivera em sua casa. 

E com profundidade e beleza Clarisse descreve a complexidade das relações humanas: “E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife’’. 

Resolvido o conflito inicial, a menina loura, alta e magra recebeu a informação de que “poderia ficar com o livro o tempo que quisesse” e para ela “isso é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer”.

É assim que a felicidade clandestina é construída. Ao chegar em casa a segunda menina não lê o livro, ela o escondia para descobrir de novo, ela evitava tocar no livro para se perceber amando o livro e pelo o tempo que quisesse poderia continuar contemplando seu próprio desejo, e assim descobriu-se “uma mulher com o seu amante”.

Quem é o outro quando o nosso desejo nos cega? 

Quando parte da história é suprimida, nosso olhar nos direciona a encontrar vilões, a julgar a nossa dor pelo o olhar do outro, mas quem é o outro? É um completo desconhecido, removida a humanidade de cada um, fica apenas estereótipos, gorda, sardenta, cabelo excessivamente crespo, feia, vingativa, estúpida… Um ser sem lugar algum no tempo e no espaço.

A literatura é um caminho (incômodo) que nos permite a chance de nomear o outro, de nos reconhecermos na menina gorda, excluída dos grupos do colégio, definida apenas pelo tamanho do seu corpo, sem nome, sem identidade, identificada pelo o que possuía e não pelo o que era em si, que quando se percebe dona de algo valioso para o desejo da outra, descobre-se capaz de vingar suas dores, mas também temos a capacidade de enxergamos na menina loura a força do nosso desejo, a vontade de olhar apenas um lado da história, de tratar o outro como um território desconhecido e por não ter nome, nem voz, nem rosto, nem alma, somos capazes de desumanizá-lo para obter o que mais desejamos.

Do que você é clandestinamente capaz para buscar a felicidade? Quem o outro se torna na sua história quando suas expectativas não são correspondidas? 

A beleza da literatura talvez resida nesse lugar. Na nossa capacidade de confrontar a nossa liberdade e a busca dos nossos desejos atravessados pelo olhar profundo, generoso e poético que só os livros podem provocar!

Foto de Capa: Pixabay

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