No livro A Sombra do Vento, o escritor Carlos Ruiz Zafón diz que “cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos por suas páginas seu espírito cresce e a pessoa se fortalece.”
Assim como na narrativa dos personagens de Zafón, a literatura também desempenha um papel essencial na vida real. Ela pode ser um tipo de refúgio, algo que representa grandes transformações para alguns, e para outros, uma forma de se expressar, entender o mundo e até a si mesmo.
Em meio a este cenário, os clubes de leitura surgem como verdadeiros espaços de convivência e troca de experiências, onde diferentes pessoas podem explorar o seu gosto pela literatura em conjunto. Em Poções, entre os diversos grupos, o Encontros é um exemplo de como a paixão pela leitura pode despertar laços duradouros e incentivar o hábito da leitura coletiva e afetiva.
A história do grupo começou há cerca de 10 anos, quando a professora Jocira Lemos passou a dar aulas de redação voltadas para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e vestibulares em sua casa nas tardes de domingo. As primeiras alunas, as irmãs Karina e Natália Ribeiro, já haviam tido aulas com Jocira no Ensino Fundamental, o que as motivou a continuarem com a professora para estudar redação.
Com o passar do tempo, outras alunas foram manifestando interesse em participar das aulas e a turma cresceu. Foi assim que Leila Costa, Beatriz Braga e Iasmim Luz se uniram ao grupo. Logo, esses encontros deixaram de ser apenas um momento de preparação para as provas e passou a ser um ambiente de convivência e troca. “O que elas fizeram foi devorar minha biblioteca; levavam muito cordel, clássicos de literatura brasileira, de literatura estrangeira… A gente batia papo, assistia filmes, ouvia música, e sempre tinha um debate antes da escrita. Depois eu corrigia a escrita de cada uma e depois a gente fazia um cafezinho. Então foi uma coisa que foi virando um laço de afeto”, relembra Jocira Lemos.
Quando as meninas finalmente alcançaram seus objetivos com o estudo de redação, mantiveram o desejo de continuar com os encontros e, por sugestão da professora, criaram o grupo de leitura. Para Jocira, o grupo é ainda mais especial pela forma que ela viu as meninas aprenderem, se desenvolverem e criarem uma forte relação umas com as outras, também pelo quanto ela também pôde aprender com elas. “Eu li várias coisas por indicação delas e elas leram várias coisas que eu tinha em casa e que a gente foi pegando depois. Virou uma amizade muito bonita “, conta ela.
A contadora Iasmim Luz, uma das integrantes do grupo, conta que sua experiência no Encontros tem sido enriquecedora. “A leitura abre os nossos olhos para uma realidade que muitas vezes passa despercebida, a discussão faz perceber que certas ações não são legais, e, muitas vezes, o preconceito está enraizado na sociedade de forma que achamos certas coisas naturais, mas, que não são, e devemos a partir de nós mudar essa visão.”
Embora o grupo – que se reúne a aproximadamente cinco anos – seja voltado para leituras feministas, os temas lidos e discutidos abrangem o racismo, a situação da mulher na sociedade, desigualdade social, entre outros. As leituras também variam entre contos, poesias, literatura acadêmica e livros-reportagem, como a obra Presos que menstruam, escrito pela jornalista Nana Queiroz, leitura que o grupo explora atualmente.
Clubes que unem pessoas, histórias e experiências
De acordo com a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada pelo Instituto Pró-Livro no ano de 2020, a população de leitores no Brasil diminuiu em 4,6 milhões em um período de cinco anos. Os dados apontam que a porcentagem de leitores no ano da pesquisa era de 52%.
Em Poções, embora não existam dados concretos, é possível verificar que nos últimos anos houve um aumento no número de pessoas se reunindo em clubes de leitura, que, além de incentivar o hábito de ler podem influenciar na formação de novos leitores. Entre os grupos de leituras locais, o Coruja Clube de Leitura é um dos mais antigos de Poções, que se mantém ativo há mais de uma década. “Um grupo de amigos, leitores e sedentos de compartilhar impressões sobre suas leituras teve a ideia de criar um clube onde pudessem dividir os livros e uma boa prosa”, conta Zezel Leite, uma das idealizadoras e primeiras participantes do clube junto com Reinilma Correia, Fábio Agra, Isabela Ferreira e Jorge Herculano.
Desde então, o clube vem lendo e discutindo um livro por mês entre clássicos e best-sellers nacionais e estrangeiros de diferentes gêneros. Com 15 membros ativos, as reuniões são conduzidas livremente e costumam acontecer em bares e restaurantes. “Na maioria das vezes, todos compartilham, fazemos muito barulho. Ficamos bravos e damos risada, a depender da nossa paixão, ou indiferença pelo livro lido”, explica Zezel. Segundo ela, cada encontro tem um coordenador que fica encarregado da organização dos eventos mensais.
Para além das leituras e discussões, o projeto inicial do Coruja Clube de Leitura era também ajudar na formação de outros clubes de leitura pela cidade. Além disso, seus membros se mantêm engajados em eventos culturais ligados à literatura. Este ano, o clube participou ativamente da organização do 1º Festival Literário e Artístico de Poções. “Anos atrás, sonhamos com uma festa literária em Poções, chegamos a nos reunir com um produtor cultural em 2015/2016. E agora, em 2024, realizamos esse sonho.”
Outro clube, que possui um formato diferente e explora temáticas distintas dos demais, é o Classic Swan. Idealizado em 2020 por Laila Oliveira, estudante do curso de Cinema da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, o clube surgiu da vontade de explorar a lista de obras favoritas da personagem Bella Swan, protagonista da série Crepúsculo. “Crepúsculo é um livro muito importante para mim, foi um dos livros que me fez virar leitora”, conta Laila. A ideia veio após o lançamento do livro Sol da meia-noite, quinto volume do universo criado pela autora Stephenie Meyer lançado mais de 10 anos depois dos livros iniciais.
A princípio seu objetivo era criar um clube de uma pessoa só, compartilhando suas experiências por meio das redes sociais. Porém, atendendo a pedidos de pessoas que gostaram da ideia, o clube se tornou aberto a todos que quisessem acompanhar as leituras. Criado em meio a pandemia do Covid-19, o clube nasceu no meio online, o que permitiu que houvesse um contato não só com leitores próximos a ela, mas de diversos estados brasileiros, como Amazonas, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Bahia que marcam presença nas reuniões online mensais.
“Foi algo que a gente tinha na pandemia pra distrair um pouco, são pessoas que tem gostos literários meio parecidos e a gente consegue compartilhar tanto sobre os livros que a gente lê no clube, tanto as leituras que fazemos por fora. A gente acabou criando uma pequena comunidadezinha; é um local sem julgamentos para falar sobre o que você gosta de ler”, explica Laila. Atualmente, o clube conta com 50 membros e passou a escolher livros com temas específicos baseados nas preferências dos participantes. Este ano, os temas escolhidos foram gótico e vampiros, e as obras selecionadas a partir de uma pesquisa de títulos conhecidos em cada tema.
Em contraste com os outros grupos já citados, o clube de leitura da Academia de Artes Os Jardins é uma iniciativa recente, criada há cerca de quatro meses. Inicialmente a ideia partiu de Jhonatã Almeida, e ganhou vida com a colaboração de todos do coletivo da academia. Com uma faixa etária diversificada que abrange desde adolescentes até adultos, o clube propõe a discussão de obras variadas com uma predominância dos clássicos. O que se reflete no primeiro livro escolhido; Ilíada, escrito no século IX a.C, pelo poeta grego Homero, que está sendo destrinchada pelo clube ao longo dos meses.
“Eu acho necessário para essa geração de agora, essa questão da leitura mais intelectual. É uma galera muito jovem, mas a gente tem a sorte de ter uma galera muito talentosa, e muito inteligente”, explica Gláuber Sá integrante do coletivo Os Jardins. Por ser uma obra densa que necessita uma certa bagagem para ajudar na plena compreensão, Gláuber afirma que algumas pessoas acabam tendo dificuldades, mas todos discutem igualmente, e expõem suas opiniões nos encontros quinzenais que acontecem na academia. Em seguida os membros do clube pretendem experienciar também leituras diferentes e menos complexas, como Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll.
De acordo com Gláuber Sá, futuramente, o coletivo da academia Os Jardins planeja ainda criar um clube de leitura infantil, com o objetivo de incentivar o gosto pela literatura nas crianças. A ideia é trazer uma abordagem mais lúdica, incluindo também outras formas de arte como a palhaçaria, o teatro de fantoches e a contação de histórias.
Laura Oliveira que também integra o clube de leitura da academia conta que gosta de ler desde pequena, mas participar do clube está sendo uma experiência nova. “É diferente e legal. Discutir sobre temas que gostamos é divertido. Falar sobre como foi nossa experiência, discorrer sobre assuntos… Dentre diversas outras bonificações, conhecer pessoas legais e tornarmo-nos amigas por compartilhar de uma mesma paixão – nesse caso, a leitura –, é uma sensação ótima.”
Os clubes do livro como um incentivo a leitura nas escolas
Proporcionar um espaço mais descontraído onde os alunos possam discutir apenas literatura no ambiente escolar, é a forma que a professora Jocira Lemos encontra de incentivar a leitura também na Escola Municipal Luiz Heraldo Duarte Curvelo. Em 2022, Jocira recebeu uma proposta de formar um clube com os alunos da escola. “Eu achei um tanto desafiador, mas como eu sou fascinada por literatura e por ler, acho libertador, topei de cara”, conta ela. Depois de planejar, alinhar com outros professores e com o cronograma da escola, o clube saiu do papel no ano seguinte.
Hoje o clube já conta com uma sala de leitura onde acontecem as reuniões e onde os alunos podem pegar emprestadas as leituras que mais os interessam. Jocira conta que alunos com dificuldades de concentração por terem crescido no meio digital, e outros que nunca tinham lido um livro por completo passaram a frequentar o clube. “Eu falo que o clube de leitura está realizando pequenos milagres. Tem menino lendo Manuel Bandeira, Roseana Murray, lendo biografias de Mandela, lendo contos, lendo livros motivacionais que falam de projetos de vida, lendo sobre bullying e cyberbullying, que é uma realidade que ainda acontece muito nas escolas.”
Jocira Lemos conta ainda sobre projetos de leitura conjunta com livros que chegam em grande quantidade nas escolas. Um deles foi o livro A face oculta: Uma história de bullying e cyberbullying, escrito por Maria Tereza Maldonado, que provocou ricas discussões entre os alunos. “Eles debateram em nível muito bom, sabe? Que a gente não está acostumado com o menino de escola pública lendo, e naquele nível de questionamento, de interpretação, de compreensão”, conta ela.
Para Jocira, a educação por meio da leitura pode transformar realidades, ampliar perspectivas e contribuir para o desenvolvimento pessoal e social dos alunos. “Não é uma coisa que atinge 100% da escola, apesar de eu estar presente nos três turnos, pela manhã, à tarde e à noite. Mas eu entro em todas as salas, então eu conheço muito bem os meninos, todo mundo já leu alguma coisa, já escreveu, já interpretou oralmente ou por escrito. E acho que isso tem um lugar ali, sabe? Que isso provoca.”