Crianças e telas: os impactos das tecnologias digitais no desenvolvimento infantil

Por Daniela Palmeira
Publicado em 30/06/2023

Desde a gestação, Roberta Fernandes já refletia sobre quais caminhos e escolhas seriam as melhores para educar sua filha. Apesar de saber que essa jornada envolve inúmeros desafios, de uma coisa ela tinha certeza: Alice não ficaria exposta a telas – pelo menos, não nos primeiros anos de vida. A preocupação de Roberta surgiu a partir do aumento de estudos que relataram o impacto negativo para o desenvolvimento de crianças que passam muito tempo em frente às telas.

Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou diretrizes que alertam sobre os altos índices de sedentarismo e obesidade em crianças. Além de orientar sobre os cuidados necessários para garantir o desenvolvimento, saúde e bem-estar de crianças que ainda estão na primeira infância. Dessa maneira, entendendo o uso de telas como uma atividade sedentária, a OMS estabeleceu recomendações específicas sobre o tempo que deve ser dedicado a essa atividade, levando em consideração a idade da criança. 

Recomendação de tempo em comportamento sedentário- Fonte: OMS

A partir do documento, a OMS busca estimular a prática de atividades que exijam das crianças mais esforço físico, movimentação e interação com o mundo real, seja por meio de brincadeiras e passeios, ao contato com a leitura e contação de histórias. Para a neuropsicopedagoga Jucineide Almeida, aproximar as crianças dessas atividades é fundamental para que haja um bom desenvolvimento. “Criança é para brincar, a criança é para correr, para ser estimulada para o desenvolvimento dela acontecer”, afirma.

Por acreditar nisso, Ana Luzia Almeida ao ficar grávida, já estava convencida de que o melhor para sua filha seria a distância de telas. “Eu sempre disse que a minha filha não iria ter contato algum com telas, que eu sempre iria privar o máximo possível que eu pudesse, de ela ter esse contato muito precoce”. Ainda assim, Ana Luzia Almeida percebia que apenas a sua vontade não seria o bastante, principalmente pelo fato das telas estarem tão presentes na própria realidade. “É um pouco complicado a gente fazer essa desvinculação”, conta. 

Como mãe, Daniela Sampaio também compreende que hoje as telas estão por toda parte, e não há como fugir. No entanto, para ela, o uso que a criança faz das telas depende de como a família se organiza para isso, de como gerencia esse contato. Por isso, durante os primeiros anos de Clarice, a preocupação de Daniela Sampaio foi a de conseguir estabelecer limites. “A internet e o uso de telas, é uma realidade que eu deveria me organizar para fazer com que não fosse adoecedora para a minha filha”.

Daniela Sampaio e sua filha Clarice

Crianças x telas: quais os impactos?

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou, em 2020, o Manual de Orientação #MenosTelas #MaisSaúde como uma forma de promover informações que contribuam para a saúde e bem-estar de crianças e adolescentes que vivem em constante contato com as tecnologias digitais. A SBP afirma que a exposição excessiva de telas e de internet durante a infância não é saudável, e recomenda que os pais limitem esse tempo de exposição.

Segundo o Manual, as mídias, enquanto servem de escape, podem causar danos graves no desenvolvimento de crianças e adolescentes. “As mídias preenchem vários vácuos, temporal ou existencial, desde não ter o que fazer, distrair, falta de apego, abandono afetivo ou mesmo pais ocupados, estressados ou cansados demais para dar atenção aos seus filhos, ou por que eles nem mesmo desgrudam de seus próprios celulares”, explica o documento.

Nesse sentido, a 9ª edição da pesquisa TIC Kids Online – Brasil, realizada em 2022 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entrevistou crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos. A pesquisa mostrou que entre os usuários de internet, 96% das crianças e adolescentes utilizam a internet todos os dias ou quase todos os dias. Além disso, 56% disseram que nunca, ou quase nunca, deixam de usar a internet porque seus pais ou as pessoas que cuidam da criança ou adolescente o(a) impedem; 29% afirmaram que isso acontece às vezes e somente 15% responderam que sempre ou quase sempre são impedidas de usarem tanto quanto quiserem.

Não conseguir impor limites para crianças e adolescentes na utilização das telas e internet, pode ser uma porta de entrada para o vício em ficar constantemente conectado aos aparelhos. A dependência digital vem crescendo na sociedade, tanto que a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11), definiu o uso abusivo de jogos eletrônicos como uma doença. A neuropsicopedagoga Jucineide Almeida, explica que essa dependência tem um prejuízo direto na vida social, acadêmica e profissional de qualquer pessoa. “[A dependência] traz prejuízos no geral para a vida do indivíduo”.

Jucineide Almeida, neuropsicopedagoga

Para a psicopedagoga e professora Angela Ferreira, uma criança dependente de aparelhos digitais está propensa a desenvolver problemas cognitivos, visuais e posturais, além de transtornos alimentares. A dependência também gera alguns costumes, como por exemplo, só conseguir se alimentar com uma tela ao lado. “Ao invés de estar vivenciando aquele momento ela [a criança] não sabe, ela não degusta com vontade o alimento”, relata Angela Ferreira. As telas podem influenciar de modo que a criança deixe de achar o universo ao seu redor atrativo, pois “o universo que ela vive na internet, não é igual”. 

Ana Luzia Almeida acredita que a palavra-chave para conseguir equilibrar a relação entre crianças e telas é o limite. Ela compreende que esse é um estímulo prazeroso e passivo e que, caso não seja policiado, a criança passa a achar normal não fazer mais nada além de ficar em frente à tela, ou só fazer algo acompanhada da tela. “Ela [a criança] só vai estar calma e vai querer produzir alguma coisa se for através de um desenho e os desenhos tem muito disso, de acabar, de certa forma, ludibriando a criança, para que eles fiquem ainda mais presos naquela realidade.”

Nos três primeiros anos de vida de sua filha Helena, Ana Luzia Almeida conseguiu mantê-la longe das telas, dedicou-se a apresentar o mundo para sua filha através de livros, brincadeiras, jogos educativos e momentos que aproximassem as duas. Ana Luzia Almeida acredita ter feito boas escolhas durante esse período: “eu percebo que tive um papel interessante na vida de Helena, porque consegui com isso mantê-la distante das telas”. Hoje Helena tem quatro anos, e recentemente as telas começaram a ser parte da sua realidade, mas de forma mediada pela mãe.

No entanto, manter essa distância nem sempre é simples. Ana Luzia Almeida conta sobre o período da pandemia, em que era preciso a todo momento buscar diferentes atividades para conseguir entreter sua filha e não se render às telas. “Teve momentos, sem romantizar a maternidade, que eu estava totalmente cansada”, conta. Ainda que essas dificuldades tenham ficado para trás, Ana Luzia Almeida lida atualmente com outros desafios, pois trabalha durante o dia e nem sempre pode estar ao lado da filha quando ela está nas telas. Por isso, a mediação por vezes é feita de longe.

Ana Luiza Almeida e sua filha Helena

A pandemia também foi um momento complexo para Daniela Sampaio, pois foi justamente durante a infância de Clarice, sua filha. Mesmo com esse contexto atípico, Daniela Sampaio buscou limitar ao máximo o uso de tela até os dois anos, mas em momentos pontuais Clarice teve algum contato com as telas. “Ela usava sobretudo quando eu tinha alguma situação de sobrecarga”, conta. Para Daniela Sampaio, o gerenciamento das telas muitas vezes vem da própria necessidade dos pais. No seu caso, ao se sentir sobrecarregada por seu trabalho, ela tentava buscar um equilíbrio entre resolver questões urgentes e o modo como sua filha usaria a tela, sempre atenta ao tempo e conteúdo que Clarice consumia.

A rotina de Roberta Fernandes também é agitada e na correria do dia a dia é preciso conciliar trabalho e maternidade. Alice tem sete anos e sempre teve pouco contato com aparelhos como computadores, celulares e tablets, entretanto, a maior preocupação de Roberta Fernandes sempre foi a televisão. Por morar com os pais, nem sempre ela conseguiu fazer com que Alice ficasse distante da televisão, visto que é algo comum para seus pais assistir a programas no aparelho durante o dia. Dessa forma, Alice acabou tendo contato com um tempo maior de tela e diferentes conteúdos que não eram específicos para sua idade. 

Consciente dessa realidade, Roberta Fernandes sempre procurou estimular a criatividade na filha, conversando com ela, inventando brincadeiras, contando histórias e ensinando para Alice que é preciso lidar também com o que acontece fora de casa. Assim, passear juntas é significado de diversão e de contato com novas experiências. Nesses momentos, Roberta Fernandes diz que aparelhos digitais são proibidos e que o objetivo é o de que Alice brinque com outras crianças, faça amizades e viva a vida no mundo real.

Roberta Fernandes e sua filha Alice

Tecnologias digitais e vida escolar

A psicopedagoga e professora Angela Ferreira defende que a escola tem um papel social – que permeia toda a vida do indivíduo – de mediar o conhecimento, gerar discussões, diálogos e contribuir para o processo formativo. “O conhecimento que se tem na escola, não se tem em outro ambiente”, diz. Por isso, essa é uma época que precisa ser experienciada, a criança deve desenvolver relações e construir vivências. Para Angela Ferreira, isso é algo que precisa ser estimulado, pois os aparelhos digitais acabam afastando as crianças e adolescentes da experiência com o outro e deixando-os mais isolados. “Falta um pouquinho de equilíbrio nessa balança.”

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Angela Ferreira conta ainda que há uma dificuldade em fazer com que o aluno preste mais atenção na aula do que no próprio celular. É como se o professor estivesse em uma competição, na qual precisa a todo momento, ser mais interessante. Nessas ocasiões, fica perceptível para a professora a necessidade de limites e os riscos da dependência digital. Angela Ferreira também destaca a carência de uma educação digital, pois já presenciou casos nos quais o aluno não confiou no conteúdo do livro porque no celular estava de outra forma. “É um problema também, até você explicar que nem tudo que está na internet é verdade”, completa.

Angela Ferreira, psicopedagoga

Pensando em educação digital, a ajuda e orientação dos pais pode ser uma maneira de ensinar a criança a fazer um uso consciente e educativo das tecnologias. Roberta Fernandes acredita que esse caminho é possível, por isso busca explicar para Alice o que ela pode assistir, o que não pode e o porquê. Quando possível também assiste algum conteúdo com a filha, como filmes e documentários, pois compreende que isso tem ajudado Alice a “desenvolver uma percepção de mundo”, por ter contato com diferentes assuntos. 

Ana Luzia Almeida sabe que a internet e os aparelhos digitais podem ter pontos positivos. Por esse motivo, explica que “é preciso mostrar para elas [crianças] que é importante, mas não é tudo”. Na vida escolar de Helena a tecnologia ocupa um lugar de destaque, pois o colégio utiliza uma plataforma digital para atribuir alguns conteúdos. Realizar as atividades dessa forma, sempre é um momento muito esperado por Helena. Ana Luzia Almeida acompanha a filha nas atividades que em geral são jogos e exercícios educativos que estimulam o raciocínio. 

 Apesar da complexa relação entre crianças, e tecnologias digitais, Angela Ferreira salienta que “a escola compreendeu a necessidade de trabalhar de mãos dadas com a tecnologia”. Não há como ignorar os avanços, ou as possibilidades que essas ferramentas oferecem, contudo é preciso que esse uso seja feito com responsabilidade. Assim como os limites e mediação devem ser trabalhados entre família, a escola precisa estar atenta para formas de controlar os acessos desses meios. 

Para a professora e psicopedagoga, compreender as tecnologias como ferramentas paradidáticas pode possibilitar também equidade ao acesso, permitindo que crianças e adolescentes que ainda não têm contato, aprendam a utilizar.  “Nós temos que trazer a internet e ver ela como aliada nesse processo de ensino e aprendizagem.”

Foto de Capa: Arquivo pessoal

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