Invisibilidade e isolamento: os efeitos do etarismo na vida das mulheres

Por Daniela Palmeira
Publicado em 05/08/2023
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Envelhecer não era uma preocupação para Isabela Freitas* que, aos 34 anos, encarava o processo de envelhecimento como parte natural da vida. “É um caminho natural, todos vamos [envelhecer] normalizar isso deve ser importante”, diz. No entanto, a idade passou a ser motivo de inquietação a partir de um acontecimento comum: quando se candidatou para uma entrevista de emprego. Tudo parecia ocorrer de forma positiva, o que deixou Isabela Freitas otimista quanto a conseguir o trabalho. 

Apesar de seu currículo ter sido elogiado, a idade foi uma questão, pois Isabela Freitas havia finalizado a graduação recentemente, e para a empresa, as duas coisas não pareciam se encaixar. “Deixaram claro a intenção de contratação, mas questionaram o fato de ter 34 anos”. A situação cultivou em Isabela Freitas um sentimento de desconforto, mesmo assim, ela esperou por alguma resposta, ainda que sem esperanças de conseguir o emprego. No fim das contas, aquilo que já desconfiava se tornou realidade: “a contratação não aconteceu e acredito que a idade foi o real motivo”. 

Isabela Freitas sentiu na pele, pela primeira vez, o peso do etarismo. A experiência deixou nela a reflexão sobre o impacto desse preconceito no mercado de trabalho, pois ao invés de levar em conta sua capacidade profissional, a idade foi o principal critério de decisão na entrevista de emprego. Para Isabela Freitas, atitudes como essa não levam em consideração “o processo de cada um”, pois ela acredita que a idade não deve ser prerrogativa para deixar de ser contratada, inviabilizada ou excluída.

O que é etarismo e como ele acontece

Segundo o Relatório Mundial Sobre Idadismo, publicado em 2022 pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o idadismo ou etarismo surge quando a idade é usada para categorizar e dividir as pessoas, de maneiras que resultam em perdas, desvantagens e injustiças. A Organização Mundial da Saúde (OMS), define essa prática como estereótipo (como pensamos), preconceito (como nos sentimos) e discriminação (como agimos) dirigida contra si mesmo, ou contra outra pessoa, baseado na idade. 

As três dimensões do etarismo. Fonte: Relatório Mundial Sobre Idadismo (OPAS).

Em muitos casos, o etarismo é visto como um exagero, uma brincadeira, ou algo inofensivo. Essas percepções são consequência de padrões culturais e estéticos que há muito tempo estão presentes na sociedade. Dados da OPAS apontam que uma em cada duas pessoas já sofreu algum tipo de discriminação por causa da idade. Já a OMS entende que o etarismo carrega consigo impactos que prejudicam diretamente a saúde, bem estar e dignidade dos indivíduos, pois nega às pessoas seus direitos humanos e a habilidade de que cada um alcance pleno potencial.

Esse tipo de preconceito pode ser dirigido à pessoas de diferentes idades e sexos, contudo, segundo o relatório da OPAS, as mulheres são as mais prejudicadas, seja durante a juventude ou envelhecimento. Quando aliado a outros tipos de discriminação como o sexismo, mulheres mais velhas são quem mais sofre com o etarismo. “Muitas vezes as mulheres se encontram em uma situação de duplo risco, nas quais as normas patriarcais e a preocupação com a juventude as levam a perder mais rapidamente seu status comparado com os homens”, descreve o documento. 

A leveza e o peso de envelhecer

“O envelhecimento é uma consciência que você vai tomando com o passar do tempo, que não é só físico, tem muito a ver também com o que você vive na sociedade”, conta Maria José Leite, conhecida como Zezel. Em diferentes momentos de sua vida, mulheres de 50 anos ou mais, faziam parte de um estereótipo, geralmente o de uma senhora adoentada, com bengala e óculos na ponta do nariz. Para Zezel Leite, muita coisa mudou e o processo de envelhecimento ganhou outros significados e representações. 

Perceber-se como uma mulher de 51 anos é mais do que olhar no espelho e notar o aparecimento de rugas e cabelos brancos. Para Zezel Leite, o que é mais marcante no envelhecimento é a passagem do tempo. E é por meio dessa consciência que é possível entender as mudanças sobre aquilo que realmente lhe inspira interesse, desejos e sonhos. Por isso, Zezel Leite considera envelhecer um privilégio. 

No entanto, esse percurso está envolto por questões complexas. O etarismo nessa perspectiva, estabelece um padrão do que é ideal para idade, o que segundo a psicóloga Angélica Mascarenhas, na maioria das vezes, vem acompanhado também de um marcador de gênero que é imposto às mulheres. “Passamos a ver defeito no natural da vida ao ponto de ser para algumas mulheres insuportável. Se esvazia o sentido de ser para si, porque o que passa valer é o que devo ser para o outro – sendo esse outro a sociedade como um todo –, já que é esperado que vivamos para sempre (para cuidar), mas sem envelhecer!”. 

Angélica Mascarenhas, psicóloga

No livro O Mito da Beleza, a jornalista Naomi Wolf explica que o que a sociedade espera é que a identidade da mulher se baseie na beleza, de modo que esse seja sempre um ponto de vulnerabilidade frente à aprovação externa. Para Zezel Leite, a consequência de não fazer parte dessas expectativas é algo como, ser um pouco menos mulher. “A invisibilidade da mulher mais velha é uma invisibilidade no sentido de que você não faz parte do padrão”. O que pode ser também um fator de isolamento, pois essa cobrança se faz presente no trabalho, em relacionamentos, amizades e nas redes sociais.

Zezel Leite acredita que fazer mudanças no corpo e aparência são escolhas que devem depender unicamente da vontade de cada um. Por isso, fez consigo mesma um trato, a partir dos 50 deixaria os cabelos ficarem brancos. “Era uma decisão minha, um plano meu”, conta. A pandemia antecipou seus planos, como não saia mais de casa deixou de ir ao salão, a única preocupação era ficar em isolamento. Durante esse tempo, entre o surgimento de fios brancos e pretos, seu cabelo ganhou uma nova cor. Mas, enquanto reconhecia sua imagem no espelho, Zezel Leite passou a receber “críticas horrorosas”.

“Tu não vai pintar esse cabelo?”, “tu é doida?”, “tu vai deixar o cabelo branco mesmo?”, “ah mas depois vai pintar né?”, foi um pouco do que Zezel Leite escutou. Já sabia que os cabelos brancos são sempre associados ao desleixo, então esperava esse tipo de comentário. Ainda que previsível, foi impossível que não produzissem efeitos sobre ela. “Foi o momento, até agora, que o envelhecimento mais bateu na minha cara, por conta dessas críticas”.

Para Angélica Mascarenhas, é preciso buscar aquilo que realmente faça sentido, para além dos padrões, se questionar sobre o que importa. Zezel Leite continuou com seus cabelos brancos, por decisão própria e acredita que a melhor opção é poder escolher, sem obrigações. Dentre suas escolhas, estão também a de viver como bem quer, de estar onde quer estar e de aproveitar o que a vida tem a lhe oferecer. “Eu não me sinto uma pessoa velha, eu tô envelhecendo, eu tenho plena consciência, não tenho problema nenhum em falar minha idade, porque eu tenho 51 anos muito bem vividos”.

 Zezel Leite

Etarismo e mercado de trabalho

Isabela Freitas conta que demorou a ingressar na universidade, sua escolha não foi feita baseada na idade, mas no período da sua vida em que se sentiu preparada para encarar os estudos. Para ela, aquele era o momento certo e completar o curso foi a vitória de uma batalha pessoal, não pela sua idade, mas por realizar algo que almejava. Entretanto, seus sonhos não pararam, ela também quer alcançar o sucesso profissional. Em vista disso, o episódio de etarismo vivido por Isabela Freitas deixou marcas. Desde então, uma questão se fez presente: quais caminhos podem surgir ou deixar de surgir no campo profissional? 

O etarismo institucional pode se manifestar em diferentes instituições, como é o caso do mercado de trabalho. Segundo dados do relatório da OPAS, o etarismo no local de trabalho ocorre em todo ciclo de operações. Durante o recrutamento, a estada no emprego e na demissão, ou processo de aposentadoria. Além disso, a discriminação pode limitar a renda de pessoas idosas e contribuir para a insegurança financeira.

Para a advogada e presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Vitória da Conquista, Rozana Martins, o etarismo, bem como o sexismo, não devem fazer parte da realidade da mulher no mercado de trabalho. A Constituição Federal e Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) vedam essas práticas discriminatórias e possibilita que mulheres que se encontrem nessa situação possam denunciar.

Nesses casos a denúncia é um passo importante, pois é a partir dela que os acontecimentos ganham maior visibilidade, e geram discussões importantes para refletir sobre as relações de trabalho. Rozana Martins explica que as denúncias podem ser feitas de forma anônima e encaminhadas ao Ministério Público do Trabalho, OAB e Defensoria Pública. Além disso, é possível fazer o registro de Boletim de Ocorrência nas delegacias, documento que também servirá de prova contra a discriminação.

Rozana Martins, advogada

Para Rozana Martins, é possível adotar atitudes de combate ao etarismo. Algo que inclusive pode ser notado na própria legislação, pois com o passar dos anos tem sido desenvolvido mecanismos que buscam identificar e combater as discriminações, a fim de aproximar-se de um mercado de trabalho mais igualitário. Contudo, ainda há muito o que evoluir, nesse sentido, a advogada cita alternativas como: “a criação de programas de inclusão, incentivo à contratação de pessoas acima dos 40 anos, assim como o fim da distinção salarial entre colaboradores de diferentes idades que exercem a mesma função”.

*O nome de Isabela Freitas é fictício para proteger a fonte que não quis ser identificada.

Foto de Capa: Freepik

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