Com os resultados divulgados e a decisão em 1º turno na maioria dos municípios, já temos respostas para muitas perguntas feitas antes da realização do pleito, no entanto, tantas outras surgem. Mas aqui desejo chamar a atenção para uma situação vivenciada em nosso município: das 13 vagas disponíveis na Câmara Municipal de Poções, nenhuma delas foi ocupada por uma mulher.
A eleição de uma Câmara Municipal totalmente masculina demonstra que as bases do patriarcado e do machismo ainda são muito fortes. Acrescento que quando enxergamos a sociedade por essas perspectivas em que as decisões e a visão de mundo são feitas pelo olhar masculino para manter seus privilégios, acabamos colocando todo mundo numa posição que não existe, isto é, a de que as políticas públicas atingem todo mundo de forma igual: homens e mulheres, brancos e negros, heterossexuais e LGBTQIAPN+, cisgêneros e transgêneros, pobres e ricos, centro e periferia, etc. Contudo, acreditar que as políticas atingem todo mundo de forma igual nos leva a muitas distorções sociais e à acentuação das desigualdades, uma vez que isso não acontece na prática. Não obstante, é necessário fazer com que as pessoas acreditem nisso, pois quem se beneficia desse sistema formado por homens, brancos em sua maioria, não tem a sensibilidade de enxergar os grupos marginalizados, nem fazem esforço para compreender as distorções sociais consequentes, pois sentem a ameaça da perda dos privilégios deste grupo.
Cabe ressaltar que o Legislativo poçoense é, ao longo da sua história, predominantemente ocupado por homens. Alguns deles com vários mandatos. A presença de vereadoras é vista quase que como uma novidade. Esta atual Legislatura (2021 – 2024) acaba sendo singular, pois temos a presença de três vereadoras (Larissa Laranjeira, Luana de Maria do Fato e Ziza). Com este resultado, obtido nas urnas em 2020, parecia que começávamos a avançar nesse aspecto e nos criou a falsa impressão de que, daquele ponto em diante, avançaríamos para termos um Legislativo mais representativo da nossa diversidade social.
Assim, gostaria de chamar a atenção para dois pontos: o primeiro, é que a maioria do eleitorado de Poções é formado por mulheres, representando 52%, conforme os dados da Justiça Eleitoral; o segundo é que, sobretudo na eleição municipal passada, as duas principais campanhas eleitorais poçoenses foram direcionadas para conquistar o voto dessas eleitoras. Nesse intuito, foram criados grupos de mulheres que faziam parte da campanha dos dois principais grupos políticos do município. Foi nesse cenário que Poções teve a primeira mulher eleita prefeita. E agora, em 2024, a sua reeleição.
Da junção destes dois pontos, a reflexão que eu gostaria de provocar é que pensássemos sobre qual seria a explicação para o fato de que, nós mulheres, sermos a maioria do eleitorado, e de a maioria dos eleitores ter elegido e reelegido uma mulher para o Executivo municipal, mas isso não se refletiu na eleição para a Câmara Municipal? Por que as mulheres parecem votar menos em mulheres? E até mesmo os homens, que parecem se mobilizar para votar em uma mulher para prefeita, por que não fazem o mesmo com o seu voto para o cargo do Legislativo?
Vou a mais uma provocação: por que tantos vereadores homens conseguem se perpetuar por vários mandatos, mas nenhuma mulher vereadora conseguiu uma única reeleição (de mandatos seguidos)? Seria isso apenas coincidência? Talvez para quem não consegue enxergar as raízes do machismo e do patriarcado como algo estrutural em nossa sociedade a resposta seria “sim, é coincidência”. Mas penso que a compreensão está em entendermos que esse problema é estrutural, e por isso está tão imbricado na nossa cultura social, no nosso dia a dia, que passa despercebido para a maioria dos olhares.
Uma das consequências disso é que, mesmo de forma inconsciente, as cobranças da sociedade são maiores sobre as mulheres. Somos, enquanto sociedade, menos tolerantes com mulheres. Exigimos que mulheres tenham um desempenho maior do que os homens e mesmo o fazendo, muitas vezes ainda não é o suficiente. Muitos ambientes ainda são vistos como estranhos às mulheres. Quando estas ocupam espaços de poder que, historicamente, foram ocupados por homens, isso causa estranhamento em boa parte da sociedade.
A política é um desses espaços, que acaba se tornando um ambiente hostil para as mulheres, o que contribui por desencorajar muitas outras de participarem da política institucional. Muitas políticas mulheres relatam já terem sofrido alguma violência política de gênero, que são formas de violências que mulheres sofrem, com o objetivo de excluir ou reduzir sua participação na política, de limitar o seu exercício das funções públicas que ocupa, as ofensas que sofrem em razão de gênero, a descredibilização de suas ações, posicionamentos e do seu trabalho de forma geral. Criam-se dúvidas sobre a capacidade de desempenho das funções por mulheres. A cobrança é elevada e a tolerância diminuída.
Com isso, há um grande prejuízo na falta de representatividade e um imensurável empobrecimento no debate e construção de políticas públicas. Aqui estamos falando da questão das mulheres, mas, cabe ressaltar que por representatividade também queremos incluir demais estratos e marcadores sociais que compõem a nossa diversidade social: raça, sexualidade, marcadores geográficos, dentre outros. Cumpre ainda frisar que já é provado por estudos, pesquisas e reportagens que espaços ocupados por mulheres têm um ambiente mais humanizado; que as mulheres têm um olhar mais sensível pelas questões que perpassam a nossa vida, o nosso cotidiano.
Para finalizar, quero apenas reforçar que um espaço que representa e, ao mesmo tempo, decide sobre os mais variados temas e políticas que afetam o nosso dia a dia, precisa também que este ambiente seja composto pela diversidade que compõe a nossa sociedade. Quem vivencia os problemas cotidianos, e muitos deles se manifestam de forma mais acentuada em determinados grupos, é que sabe melhor a necessidade e a urgência de resolvê-los. É preciso reconhecermos isso, se quisermos, de fato, um ambiente político mais condizente com a população que representa e para que possamos avançar na redução das desigualdades sociais. O que aconteceu na eleição de domingo gerou insatisfação e indignação em várias pessoas. Nos colocou em reflexão, mas o desafio maior está em transformamos tudo isso em ações que evitem que isso continue acontecendo nas próximas eleições.
Então, respondendo ao questionamento do título deste artigo, a aparente pane no sistema é, na verdade, somente o sistema patriarcal funcionando em suas perfeitas engrenagens, favorecendo a perpetuação do domínio masculino, que continua tendo o poder de tomar as decisões que afetam toda uma sociedade, plural, diversa. Como tudo isso é tão culturalmente estrutural, já ganhou aspecto de paisagem e, por isso, sequer é percebido pela maioria das pessoas. É preciso desconstruir esse olhar para compreendermos que sociedade nenhuma será verdadeiramente evoluída enquanto as desigualdades ali existirem. É preciso também compreender que quem se beneficia de um sistema de privilégios não têm interesse em agir para destruí-lo. E somente uma ocupação mais representativa da política (não somente a política institucional, mas principalmente ela) para revertermos essa situação. É necessário trabalharmos educação política na população, encarar a política com a seriedade necessária e entendermos que tudo o que fazemos e vivenciamos é política: como nos organizamos e nos dividimos; o que comemos, bem como a falta de alimentos; a qualidade da nossa alimentação; o acesso ou a falta de infraestrutura urbana; a segurança pública; a propriedade; os direitos sobre nossos corpos; enfim, tudo é fruto de escolhas políticas. Portanto, numa sociedade tão diversa, essas decisões não deveriam ficar nas mãos de um grupo tão homogêneo.
Foto de Capa: Pixabay
Samara Campos Ribeiro é graduada em Economia pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, Pós graduada em Gestão Pública