“NoMo” – A possibilidade de considerar a não maternidade 

Novas gerações de mulheres falam abertamente sobre a não maternidade. Mas nem todas ainda têm acesso às informações necessárias para tomar tal decisão.
Por Raquel Rocha
Publicado em 25/03/2025
A geração de mulheres que optaram pela não maternidade
Imagem gerada por Inteligência Artificial (ChatGPT).

Os brinquedos da infância são parte importante do desenvolvimento da criança, eles são aliados na formação, ajudando-as a lidar com habilidades e desafios, a processar emoções e informações. Mas também existem algumas normas sociais, estabelecidas ao longo do tempo, que designam qual brinquedo é para menina e qual é para menino.

Essas normas, geralmente baseadas em uma divisão binária de gênero (feminino e masculino), também estão relacionadas aos papéis sociais designados para ambos. Por isso, ainda hoje – embora essa lógica seja cada vez mais questionada – é comum vermos as meninas ganharem bonecas, cozinhas e utensílios domésticos de brinquedo. Enquanto para os meninos, são destinados os carros, espadas, bolas e super-heróis. 

Cristiane Cunha atuou como coordenadora no NASF. (Foto: arquivo pessoal)

A psicóloga, especialista em psicanálise e servidora pública, Cristiane Cunha, destaca que em uma sociedade patriarcal, as mulheres são formadas para a maternidade desde a infância.

“Nós crescemos brincando de boneca, aprendendo a trocar os bebês, colocando para dormir. E, com o tempo, esses brinquedos foram ficando mais especializados,  agora tem a mamadeira, o bebê chora, faz xixi. Aí precisamos refletir, a mulher cresce com essa experiência”. 

Mas as novas gerações de mulheres, sobretudo aquelas que nasceram em épocas marcadas por diversos avanços conquistados pelos movimentos feministas, a partir da década de 1980, estão repensando certos papéis. Um deles é o da maternidade. 

A Geração NoMo (Not Mothers), questiona a maternidade como um “caminho natural para a mulher”, e reivindica o respeito pela escolha de não ser mãe. Em 2020, um estudo realizado pela Bayer em parceria com a Federação Brasileira de Ginecologia e pela Think about Needs in Contraception (TANCO), revelou que 37% das mulheres brasileiras, com idade entre 18 e 49 anos, não querem ter filhos. 

Embora os discursos machistas atribuam essa escolha ao fato de essas mulheres não terem bons parceiros ou estabilidade, e que somente por isso tomam tal decisão, os dados apontam que 56% das entrevistadas na pesquisa estão em uma relação estável e 74% possuem trabalho integral ou parcial. 

Mesmo quando a decisão não está necessariamente na não maternidade, a geração NoMo também faz movimentos disruptivos – e graças ao avanço da ciência – podem optar, por exemplo, pelo congelamento de óvulos.

A maternidade como norma social

A sociedade frequentemente associa a identidade feminina à maternidade, criando expectativas e pressões sobre as mulheres ao longo da vida. Mas essa construção do desejo materno é influenciada por fatores culturais e históricos que reforçam a ideia de que toda mulher deve desejar ser mãe. Por outro lado, as mulheres que escolhem não serem mães, enfrentam questionamentos constantes sobre essa decisão. 

A psicóloga Cristiane Cunha identifica um movimento de contradição na expectativa social que valida a mulher a partir da maternidade, já que a mãe também tem sua individualidade invalidada diante da maternidade. “É bem paradoxal, primeiro, ela precisa ser validada a partir da maternidade. Porém, a maternidade automaticamente vai invisibilizá-la. Porque ela deixa de ser mulher a partir daquele momento que se torna mãe. A mulher não tem mais direito de diversão, ela não pode mais deixar o filho com outra pessoa para passear, para curtir, para ir no show, para ir numa festa. Porque ela agora só é mãe”, destaca. 

São questionamentos como estes que Jocelia Brito, 36 anos, manicure e casada, ouve desde que externou pela primeira vez a escolha de não ser mãe. “Desde a adolescência, eu já percebia a dificuldade que é ter um filho. Quando você tem um filho é um contrato de responsabilidade que você faz a vida toda, então ao longo dos anos, eu fui compreendendo cada vez mais que não queria ser mãe”, conta. 

Jocelia Brito e Gilvan Ferreira são casados há 11 anos e decidiram não ter filhos. (Foto: Arquivo pessoal)

Mesmo com a decisão unânime do casal em não querer ter filhos, constantemente Jocelia se vê cobrada por optar pela não maternidade. Olhares desconcertados, suposições de egoísmo e a cobrança de dar um filho ao marido são algumas das coisas que ouve. “Mesmo meu marido não querendo ser pai, tem gente que diz ‘isso é porque você falou que não quer ser mãe. A mulher que não dá filho ao marido, ele abandona’”, relata.

Como a maternidade é encarada como um caminho natural para a mulher, mas a paternidade é uma escolha para os homens, o peso pela decisão de não ter filhos também recai de forma diferente sobre cada um. A ideia de “dar um filho ao parceiro” é constantemente reforçada em relacionamentos heteronormativos, mas os dados apontam que o homem pode decidir não ser pai, mesmo depois de já ter tido um filho.

Uma pesquisa publicada em 2023 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) revela que, em dez anos, o número de mães solo cresceu 1,7 milhão. E, de acordo com dados do Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), mais de 160 mil crianças foram registradas sem o nome do pai no Brasil, em 2024.

“Quando o homem se torna pai, ele continua com os direitos garantidos de diversão, de sair, de curtir, de continuar com a mesma carga horária de trabalho que tinha antes”, afirma Cristiane ao enfatizar como a carga de trabalho e demanda trazida pela maternidade atingem homens e mulheres de forma assimétrica.

Esses dados evidenciam como a escolha de não ter filhos tem crescido principalmente, entre as mulheres, já que, além de todas as alterações que ocorrem no corpo feminino ao longo da gestação, a mulher recebe uma carga maior de trabalho não reconhecida na maternidade e também será socialmente culpabilizada se o parceiro abandoná-la com o filho. 

Para a ginecologista e obstetra, Ana Carolina Coelho, ao acompanhar o grande número de pacientes que chegam ao consultório já com a decisão de não ser mãe bem elaborada, ou ainda, muitas mães que lidam com a culpa de não amar a maternidade, uma coisa está clara:  a carga está na maternidade e no papel social que ela representa. 

“Quando uma mulher se torna mãe, toda a pressão vem junto com isso. Porque a gente sabe que entre mãe e pai, cada um era para ter 50 % de responsabilidade, mas na prática não é, as mulheres são sobrecarregadas. Até por isso que hoje se fala mais da possibilidade de não ter filho; ou que essa mulher que não planejou, mas acabou engravidando, encontra um lugar mais seguro para falar: ‘poxa, eu amo o meu filho, mas eu não amo a maternidade’”, afirma a doutora. 

A economista e assessora parlamentar, Samara Campos, 39 anos, também tomou a decisão de não ter filhos desde a adolescência. Para ela, o caminho de quem escolhe não aceitar papéis socialmente estabelecidos para as mulheres, enfrenta muitos julgamentos, mas enxerga que este movimento é cada vez mais aceito, tendo inclusive o apoio de mulheres que já são mães. Por ser solteira, ela também precisa lidar com julgamentos sobre como decidiu encarar a expectativa social do matrimônio. 

Ao longo do tempo, tanto Samara Campos quanto Jocelia Brito têm encontrado mulheres que são mães apoiando sua decisão. “Tem umas amigas que têm filhos e quando eu falo que não quero ser mãe falam ‘isso mesmo, se eu pudesse voltar, talvez eu tomasse outra decisão”, conta Jocelia.

Quem pode tomar essa decisão? 

Quando se fala sobre a decisão de não ser mãe, é importante olhar para os recortes sociais que possibilitam que uma mulher chegue a essa conclusão. Mulheres com maior nível educacional e estabilidade financeira frequentemente têm maior autonomia para fazer essa escolha, devido ao acesso a informações, a métodos contraceptivos eficazes e oportunidades profissionais que lhes permitem priorizar outras áreas da vida além da maternidade. 

Para Cristiane Cunha, enquanto mulheres de classe média/alta podem focar em carreiras profissionais, acessar e priorizar experiências individuais, como viagens e educação, mulheres mais pobres ou em situação de vulnerabilidade socioeconômica nem sempre conseguem suporte emocional, social ou financeiro para tomar essa decisão.

“Existem mulheres que nunca tiveram a possibilidade de pensar sobre isso. Algumas, ainda jovens e sem acesso à educação, encontram na maternidade a única forma de realização pessoal, ou objetivo de vida”, afirma. 

Essa realidade escancara problemas que devem ser tratados na esfera pública, a partir de políticas efetivas que promovam acesso a serviços de saúde reprodutiva e informações adequadas sobre planejamento familiar. Em 2018, o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) divulgou um relatório que evidenciou como  as desigualdades econômicas e educacionais impactam diretamente nas taxas de fecundidade, levando mulheres menos escolarizadas a terem mais filhos do que desejavam. ​

Para Samara Campos, acessar a educação superior foi determinante para compreender as dinâmicas sociais de gênero e  tomar uma decisão consciente de não ser mãe. “Eu acredito que não somente a educação formal, acadêmica, mas a educação em vários sentidos ajudam mulheres a tomar essa decisão. Uma educação política no sentido amplo, porque essas coisas precisam ser discutidas e precisam ser normalizadas”, destaca. 

Impactos na saúde feminina e contracepção 

A maternidade pode ser desafiadora para as mulheres em todos os cenários. Começando na gestação, fase que impacta o corpo da mulher, com alterações  hormonais, e a exigência de um acompanhamento minucioso, incluindo o parto. Depois vem a carga mental para lidar com as expectativas sociais, familiares, o puerpério e tudo que acompanha a mulher nesta jornada.

Por isso, uma gravidez indesejada ou planejada apenas baseada no interesse de terceiros, pode impactar diversos aspectos da saúde feminina, tanto física quanto mental. Compreender esses impactos é essencial para que as mulheres façam escolhas informadas e recebam o suporte necessário em sua jornada reprodutiva.

A Dra. Ana Carolina Coelho ressalta que a decisão consciente de não engravidar permite à mulher evitar os riscos associados à gestação e ao parto, além de possibilitar um planejamento mais eficaz de sua saúde reprodutiva. Ela também enfatiza a importância de um acompanhamento médico adequado para avaliar as opções contraceptivas ideais para cada perfil.

A Dra. Ana Carolina Coelho acredita que a medicina precisa acompanhar as evoluções socioculturais. (Foto: Arquivo pessoal)

A ginecologista destaca a importância de uma abordagem personalizada na escolha do método contraceptivo, visto que, os efeitos colaterais de alguns métodos contraceptivos hormonais, como alterações de humor, ganho de peso e diminuição da libido precisam ser avaliados na escolha. “É essencial que a mulher esteja ciente dos possíveis impactos e discuta com seu médico a melhor opção para seu caso específico”.

O acompanhamento também deve abranger a saúde mental. A psicóloga Cristiane Cunha observa que a pressão social para que a mulher se torne mãe pode gerar ansiedade e estresse, especialmente quando essa não é sua vontade. “A decisão de não ter filhos pode ser libertadora para muitas mulheres, mas também pode trazer desafios emocionais, especialmente em sociedades onde a maternidade é vista como um papel essencialmente feminino”

Envelhecer sem filhos é um problema?

Quando falam sobre a não maternidade, Samara e Jocelia comumente se deparam com a pergunta: “e quando envelhecer, quem vai cuidar de você?”. Além disso, também precisam lidar diariamente com a percepção de que não ter filhos é um ato de egoísmo.

O Art. 229 da Constituição de 1988, estabelece que os filhos maiores de idade têm o dever de ajudar os pais na velhice ou em casos de enfermidade, mas nem sempre isso pode ser garantido. Criar filhos com o propósito de ter apoio ao envelhecer, revela que nem sempre os pais estão preocupados com a autonomia e individualidades dos filhos. “Cada indivíduo tem o direito de escolher o caminho que lhe traz realização e felicidade, e isso deve ser respeitado”, afirma Cristiane. 

Para Jocelia é possível envelhecer de forma plena e satisfatória sem a presença de filhos, desmistificando a ideia de que a maternidade é essencial para uma vida completa. “Eu já ouvi muito que um casal só é feliz se tem filhos. Em tudo as pessoas colocam um pretexto para ter um filho. E a gente viu, ao longo desses 11 anos de casados, que não é bem assim. Você não pode apostar a sua felicidade em um ser. A felicidade depende do respeito, das qualidades que a gente desenvolve no trabalho em equipe, um com o outro”, destaca.

Justamente por amar crianças e valorizar a infância é que Jocelia entendeu que não desejava ser mãe. Sem filhos, ela consegue dedicar mais o seu tempo para as pessoas que ama e fazer mais pelos outros, já que também faz um serviço social voluntário. “É claro que existem mulheres que são mães e conseguem fazer isso. É louvável. Mas eu acho que se eu fosse mãe, talvez eu não conseguiria dar o que eu posso dar hoje”, afirma a manicure. 

Novas configurações familiares e rede de apoio

Pesquisadores e especialistas no tema têm pontuado cada vez mais sobre como as configurações familiares têm passado por transformações significativas, refletindo mudanças sociais e culturais, nos levando a conclusão de que não existe um modelo ideal de família. Por isso, é comum encontrar arranjos que divergem do modelo tradicional, incluindo casais sem filhos, famílias monoparentais, multiespécie e uniões homoafetivas. 

Essas novas formas de organização familiar desafiam normas estabelecidas e ampliam a compreensão do que constitui uma família. A ausência de filhos biológicos não implica necessariamente em falta de suporte emocional ou prático na vida adulta. Muitos indivíduos constroem redes de apoio sólidas por meio de amizades, parcerias e conexões comunitárias. Para Samara envelhecer sem filhos não é um problema; é apenas uma forma diferente de viver a vida.

Tais redes podem desempenhar um papel crucial na promoção do bem-estar e na oferta de suporte em momentos desafiadores, evidenciando que o conceito de família pode transcender laços sanguíneos e se basear em vínculos afetivos e de solidariedade mútua.

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