“Nós estamos apáticas, tristes e desmotivadas” Adoecimento dos professores afeta carreira profissional e qualidade de vida 

75,5% dos professores acreditam que um dos principais fatores para desistência ou pensarem em desistir da carreira docente estão relacionados a questões psicológicas
Por Daniela Palmeira
Publicado em 15/10/2024

Nilda Novais não se reconhecia, ela não era – nem se sentia – mais a mesma. Menos empolgada e sorridente, menos entusiasmada e comunicativa. Após 26 anos atuando como professora, percebeu que aquilo que durante tanto tempo foi sua forma de unir o “útil ao agradável” – em outras palavras, a busca por uma profissão e o amor pelo ensino –, agora lhe fazia sofrer. Nilda não sabia muito bem o porquê, não conseguia entender como algo que gostava tanto, que sempre foi motivo de orgulho, podia lhe provocar sentimentos tão conflitantes e dolorosos. 

Por isso, Nilda Novais tentou buscar as respostas em diferentes lugares, tentou nadar contra corrente do que estava sentindo. “Eu sempre estava tentando. Mas a minha vontade era só ficar na minha cama, não queria mais sair para ir à escola de manhã”, conta. 

Ainda assim, todos os dias ela percorria o mesmo caminho para o trabalho, e procurava se apegar às boas lembranças das crianças, aprendendo a escrever as primeiras letras, o nome e a ler as primeiras palavras. Lembranças dos seus alunos do EJA, que sempre a deixavam mais calma e relembravam as pequenas alegrias escondidas entre os desafios de ser educadora. 

Em alguns momentos nem isso funcionava, não era o bastante para ultrapassar aquele sentimento que parecia maior do que ela. Depois de alguns conselhos de colegas de profissão, Nilda se consultou com psiquiatras e psicólogos, a fim de encontrar respostas para o que acontecia. Descobriu que, após mais de 25 anos como pedagoga, se encontrava em um momento de crise com a sala de aula, afetada por um profundo esgotamento emocional. “Você vai trabalhando, vai trabalhando, e chega um momento que você tá estafada, aí você pergunta de quê? E aí vem todas aquelas consequências de muitos e muitos anos acumuladas”.

Uma profissão cada dia mais adoecida

Inúmeros estudos, pesquisas e levantamentos brasileiros têm escutado professores com o intuito de compreender as causas e circunstâncias responsáveis pelo adoecimento da categoria, que tem se intensificado nos últimos anos. É o caso da pesquisa realizada pela Associação Nova Escola, em parceria com o Instituto Ame Sua Mente, que em 2022 entrevistou mais de 5 mil profissionais da educação de todo o país. A pesquisa constatou que 45,2% dos educadores consideram sua saúde mental regular, 13% consideram ruim e 8,4% consideram péssima. A porcentagem de professores que consideram a saúde mental ruim ou péssima sofreu um aumento em relação ao ano anterior em que a pesquisa foi realizada, passando de 13,7% para 21,5%. 

A temática também foi objeto de estudo do livro Seminários – Trabalho e Saúde dos Professores: Precarização, Adoecimento e Caminhos para a Mudança, lançado em 2023 pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro). O estudo reúne uma série de textos de diferentes pesquisadores, nos quais argumentam sobre os principais fatores que convergem para o agravamento da saúde dos professores no Brasil. Seja na rede pública, privada ou em ambas, os professores sofrem de um mesmo conjunto de males em que predominam distúrbios mentais, como: síndrome de burnout, estresse, depressão, ansiedade, dentre outros. Além de distúrbios vocais e osteomusculares.

Como consequência, a realidade de adoecimento entre os professores têm interferido diretamente em suas carreiras profissionais, levando a afastamentos da sala de aula, mudanças de função ou mesmo a antecipação da aposentadoria. Dos mais de 6 mil professores entrevistados para a pesquisa Futuro da Docência – divulgada em 2023 e realizada pela ONG Conectando Saberes –, 75,5% acreditam que um dos principais fatores que fazem os professores desistirem ou pensarem em desistir da carreira docente está relacionado a questões psicológicas.

O município de Poções não é uma exceção à regra, tampouco a situação vivida por Nilda Novais é um caso isolado. A advogada e assessora jurídica da APLB Sindicato do município, Ariela Cunha, explica que entre os casos mais recorrentes em suas consultas, estão professores laudados com casos de depressão, exaustão, fibromialgia, dentre outros, em busca de informações, requerimentos e orientações.

“As principais questões para assessoria jurídica são pautadas para esclarecimentos se já preenchem os requisitos [etário e contributivo] para requererem a aposentadoria, […] bem como orientação sobre direitos para licenças e afastamentos. Além disso, buscam o sindicato para informações sobre possibilidade de readaptação funcional por não conseguirem mais efetuar um trabalho produtivo, devido aos problemas de saúde nos quais são acometidos”.

A advogada conta que, ao longo dos anos que atua como assessora jurídica da APLB, têm percebido o aumento de casos de esgotamento emocional entre os professores. “Por inúmeras vezes já saí da APLB abatida e reflexiva, pensando naquele professor que não possui condições emocionais de ministrar uma aula de qualidade para os alunos, de inovar seu desempenho, enfim, de ter prazer em trabalhar na sala de aula. Muitos sentem necessidade de sair correndo da sala e irem ao banheiro para chorar, para respirar, para buscar forças em continuar. É desesperador escutar esses relatos”.

Os caminhos que levam ao esgotamento físico e emocional

“No último ano eu fui diagnosticada com a Síndrome de Burnout, uma síndrome acometida pelo estresse, pelo cansaço, pela exaustão, por tudo ali que acontece em torno do ambiente de trabalho”, relata Hilda Gomes, pedagoga que atua no município há 25 anos. Nos últimos quatro anos, Hilda viu sua relação com a sala de aula mudar e se transformar em momentos de constante preocupação, pânico, ansiedade e tristeza. “Tem momentos que eu tenho que dar atestado, tem momentos que eu tenho que sair da sala de aula, tem momentos que eu não aguento ir, tem dias que eu preciso ir embora”.

O psicólogo Lucas Oliveira explica que a Síndrome de Burnout está ligada ao estresse e a sobrecarga física e emocional no ambiente de trabalho. A síndrome se destaca por três aspectos principais: a exaustão emocional, que provoca a sensação de falta de energia e esgotamento; a despersonalização, na qual a pessoa começa a se distanciar de tudo que envolve o ambiente de trabalho; e a baixa realização profissional, que diz respeito a insatisfação com o trabalho desenvolvido, e o sentimento de não ser mais tão competente ou capaz.

Hilda Gomes e Nilma Novais viveram tudo isso na pele. Não conseguiam mais se concentrar no trabalho e preparar aulas. Pensar em ir para a escola instalava em seus corações uma angústia sem fim. O sentimento de culpa também se fez insistentemente presente, como se não tivessem direito de sentir aquela dor, como se o fato de não sentir fosse uma escolha simples. “Eu estava me vendo num faz de conta de ir trabalhar, num faz de conta de ensinar, porque eu tinha que cumprir. (…) Nós estamos apáticas, tristes e desmotivadas. Até mesmo chorosa, muitas vezes”, relembra Hilda.

Para a professora, o trabalho de educar, por si só, já é algo desafiante, em que é preciso lidar com um cenário complexo, com alunos em níveis de interesse e aprendizado diferentes, além de uma realidade familiar e social muitas vezes desigual. “Então a gente se vê no ambiente que somos cobrados por resultados, somos exigidos a todo tempo. É uma sobrecarga muito grande, isso afeta o psicológico, isso afeta o emocional e consequentemente até mesmo o físico. A gente acaba adoecendo também fisicamente com dores, dor de cabeça, com dores de coluna, nas mãos e nas pernas”.

Dinorá Dias é professora de Geografia há 31 anos. Atualmente, dá aulas para escolas do estado, mas também já trabalhou em escolas do município e da rede privada. Assim como Hilda Gomes, Dinorá Dias entende que a cada dia é mais difícil ser professor. “A gente hoje tem mais conhecimento, a gente sabe mais, todo mundo tem acesso à informação, mas a gente tem um alunado que quer menos, que deseja menos”, explica. 

Dinorá sempre teve como missão fundamental da sua profissão fazer a diferença na vida dos seus alunos através da educação, e se distanciar desse objetivo gera frustração e sofrimento. “Paralelo a tudo que a gente tem de problemas emocionais e físicos, a gente ainda tem hoje essa dificuldade que é você querer ensinar alguém que não quer aprender.”

Desde 2002, Dinorá convive com o diagnóstico da fibromialgia – síndrome clínica que se manifesta com dor no corpo todo, principalmente na musculatura. Além das dores musculares, também pode causar sintomas como fadiga, alterações de memória e atenção, ansiedade e depressão. A fibromialgia é algo que acompanha Dinorá durante toda a sua vida, da qual ela não pode se desvencilhar. Justamente por isso, precisou aprender a lidar e lutar pela sua qualidade de vida. “São escolhas que eu faço todo dia. Se eu disser para você que todo dia é fácil, não, não é”.

Para além dos sintomas da fibromialgia, Dinorá precisou enfrentar também os distúrbios osteomusculares que os anos de sala de aula causaram. A carga horária na escola, alinhada a todas às demandas que o professor precisa trazer para casa, exige que o corpo seja uma máquina, sem pausa, afundado em um trabalho contínuo. Hilda vê esse problema como uma das principais questões para a sobrecarga física e emocional do professor, pois, por vezes, é preciso abdicar do descanso, lazer e da própria família, em prol do trabalho. “Nós não temos tempo para preparar, para pesquisar, para buscar, e é uma cobrança que tenha essas novidades. Mas em que momento?”, questiona Hilda. 

Diante de um cenário tão complexo, quais as alternativas?

“Primeiro um olhar humano, trazer para debate essa temática. Demonstrar para o professor que ele não está sozinho, demonstrar para o professor que ele tem apoio diante das demandas do dia a dia, que não é vergonha nenhuma ele dizer que não está bem”. Para Hilda, esses são os primeiros passos para ajudar e acolher o professor frente ao cenário de adoecimento. Ela acredita que antes de tudo é preciso ouvir os profissionais de modo geral, compreender quais as dificuldades e o que estão sentindo, ainda que não estejam adoecidos. Hilda vê a prevenção como o melhor caminho para cuidar dos professores e evitar o esgotamento físico e emocional.

Diante da própria experiência, Dinorá percebe que a atividade física é um suporte emocional importante. Durante vários anos da sua vida, práticas como barras de access, meditação, pilates e musculação, além de uma forma de autocuidado, lhe ajudaram a conhecer a potência do corpo e da mente. “Seria interessante, por exemplo, promover atividade física para o professor, momentos de interação, pontos de conversa, coisas que sejam para a gente poder sair também, se distrair. Nem que seja para sentar, conversar e chorar junto”.

Para Dinorá, é preciso investir em um atendimento psicológico para os professores de modo ampliado, para alcançar cada vez mais a categoria. Assim como “palestras, rodas de conversas, mas que as pessoas pudessem realmente falar de forma coletiva, além desses atendimentos individuais com psicólogos. Rodas de conversa mesmo para a gente perceber que a dor do outro, ou a minha dor também é do outro, que a gente está junto, eu acho que a gente se fortalece muito quando a gente trabalha no coletivo”. 

O psicólogo Lucas Oliveira defende que a terapia é um caminho eficaz no tratamento da Síndrome de Burnout, pânico e ansiedade. Ele cita também a possibilidade de criar programas de bem-estar no trabalho, com sessões de relaxamento, mindfulness e atividades físicas. Assim como grupos de apoio social, que proporcionem um espaço acolhedor para compartilhar experiências e receber suporte emocional. “Além disso, mudanças no ambiente de trabalho, como a redução da carga horária, flexibilização de horários e melhorias nas condições de trabalho, podem ajudar a diminuir o estresse”, conclui.

Nilda, Hilda e Dinorá veem a questão da carga horária como algo urgente, que precisa ser revisto para o bem da saúde dos professores e da valorização da profissão. “Não é que o professor é preguiçoso, ele não vai deixar de trabalhar. Simplesmente ele vai ter mais tempo para elaborar uma avaliação melhor, para elaborar suas aulas melhor, para fazer uma coisa melhor para o aluno mesmo, e para ele também”, justifica Nilda.

O conteúdo desta reportagem foi originalmente publicado no jornal Impresso Sala dos Professores, da APLB, reproduzido na íntegra pelo Site Coreto.

Foto de Capa: Freepik

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