Mulheres vencem o machismo diário e ocupam lugares de destaque na agricultura familiar em cidades como Poções e Barra do Choça.
Ao amanhecer na cidade de Barra do Choça, a agricultora Joara Silva de Oliveira se levanta para organizar mais um dia de trabalho na Cooperativa Mista dos Pequenos Cafeicultores de Barra do Choça e região, onde exerce o papel de presidente. Quando chega na instituição, designa as atividades diárias dos colaboradores, e durante sua rotina diária, recebe muitos cooperados, participa de reuniões e planeja melhorias para agricultura familiar local.
A diretora é uma referência no campo da agricultura, cafeicultura e liderança feminina no cooperativismo. Nascida na zona rural do município, ainda pequena desenvolveu habilidades com o cultivo da terra e cuidados com os animais. Foi João Ribeiro, seu pai, quem lhe apresentou a associação na época em que fazia parte dela, desde aquele momento ela desenvolve atividades de gestão.
Joara também trilhou pelos caminhos da educação, a sua primeira formação foi magistério, depois Pedagogia, pós-graduação em Gestão Escolar e mestrado em Gestão Educacional. Ela também foi professora em um curso de cafeicultura fornecido pelo Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego). Mas a tradição da agricultura, que lhe foi ensinada pelo tataravô, sempre esteve presente em seu caminho. Nos anos de 2013 e 2014, ela começou a participar das atividades da Cooperbac e foi destaque na organização dos projetos e na conquista da aquisição de maquinários e veículos para produção e comercialização do café.
Em busca de aprimorar os seus conhecimentos para aplicar na sua área de trabalho, a produtora rural iniciou a sua graduação em Agronomia, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e hoje, é produtora de hortifrutigranjeiros e café. Na cooperativa, Joara aprendeu a utilizar todo o maquinário necessário para produção, empacotamento e comercialização do café, para ela conhecer todo o processo é fundamental para exercer um bom trabalho.
A cooperativa onde trabalha surgiu em 20 de dezembro de 2007 e possui o selo da Agricultura Familiar, instrumento de agregação de valor ao produto. Lá, o principal produto é o café, no entanto, mais de 300 agricultores familiares comercializam as suas mercadorias, sejam elas hortifrutigranjeiros ou o próprio café. Segundo a gestora, para ser agricultor ou agricultora é preciso ter responsabilidade com aquilo que é produzido. “Com o café, por exemplo, para entrar nas estufas, onde é realizada a secagem dos grãos pós-colheita, é necessário o uso de toucas, a troca dos sapatos, limpeza das mãos, entre outros”, conta.
Como líder, ao longo da sua trajetória, passou por momentos onde foi invalidada simplesmente por ser mulher, principalmente na comercialização dos produtos e quando orientava a execução de atividades para alguns funcionários e era ignorada. Reflexo da sociedade, o machismo é perpetuado, principalmente em atividades que socialmente são designadas para os homens, como a agricultura. Para a produtora, é preciso se impor e mostrar que sabe e possui conhecimento sobre aquele assunto.
“Isso eu aprendi muito com minha mãe, na época da colheita, meu pai sempre deixava minha mãe tomando conta e eu via ela se impor, ela se colocava como uma pessoa que sabia que estava ali para mostrar o que era para fazer, que ela entendia do assunto”.
Joara é guiada pelos passos da mulher que mais a inspirou na liderança feminina, sua mãe, dona Maria Nilda Viana. Como presidente na Cooperbac, ela incentivou a iniciativa de muitas ações para beneficiar as mulheres e os jovens. O projeto que lançou o primeiro café produzido por mulheres foi uma dessas iniciativas, e teve o apoio do Trias Brasil juntamente com a Agricord, o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD), União Europeia (EU) e Confederação das Organizações de Produtores Familiares do Mercosul Ampliado (Coprofram), que promoveram o Projeto FO4.
Assim como Joara Silva, Márcia Silva Rocha também exerce um papel importante na liderança feminina no setor agrícola, atuando como presidente da Associação dos Apicultores de Barra da Choça. “Há quatro anos eu assumi a presidência da associação. Nesse período, nós já conseguimos uma Casa do Mel toda equipada, um veículo que fazemos o transporte do mel da casa até o mercado, temos nosso rótulo e vendemos nosso mel em todo o Brasil”, relata.
“Comecei a trabalhar com apicultura enfrentando desafios, porque muitos homens achavam que ser apicultora não era papel de mulher, mas eu estava sempre lá batalhando”.
Atualmente, enquanto presidente de uma associação, Márcia relembra sua história na Agricultura Familiar como algo que é parte da sua vida, pois vem de uma família de agricultores e, aos 11 anos, já ajudava seus pais na roça. No começo, colhia apenas café, mas aos 16 anos ela tomou a iniciativa de trabalhar, não apenas com a cafeicultura, mas também com apicultura.
Ela administra a propriedade rural da sua família juntamente com seu esposo, e além de mel, também produz café especial. Márcia relata os desafios de ser mulher agricultora, pois encontra muito machismo e preconceito ao longo da sua trajetória, mas nenhum obstáculo a impede de ser determinada. “Graças a Deus eu tenho um esposo que é um homem que reconhece e valoriza muito o meu trabalho. Então, isso me faz ser forte, me faz erguer a cabeça e conquistar os meus sonhos”, afirma.
Para Márcia Rocha, ser uma representatividade feminina na agricultura é significado de persistência, e por ser apaixonada por abelhas, trabalha com muito amor e carinho. Como cafeicultora, foi uma das vencedoras do 1º Concurso de Qualidade de Café de Barra do Choça. Em 2022, recebeu uma homenagem na Cooperbac, cooperativa que Márcia faz parte há dez anos, o primeiro lote do Café Femino Cooperbac Premium contou a história dela, como produtora de café especial.
“A mulher trabalha, mas é invisibilizada”
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na América Latina e Caribe, cerca de 60 milhões das mulheres trabalham no campo, sendo responsáveis pela produção de 60% a 80% dos alimentos consumidos na região. Já dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que as mulheres rurais na agricultura familiar são responsáveis por cerca de 43% da renda das suas famílias, superando a proporção observada em áreas urbanas.
Na cartilha eletrônica “Um novo retrato da Agricultura Familiar da Bahia: a partir dos dados do Censo Agropecuário 2017”, realizada pelo Projeto AKSAAM – Adaptando
Conhecimento para a Agricultura Sustentável e o Acesso a Mercados – IPPDS/UFV e Financiada pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), a Bahia se destaca como o estado brasileiro que possui o maior número de estabelecimentos de agricultores familiares.
Mesmo com histórias como essas de liderança feminina na agricultura familiar, diariamente muitas mulheres convivem com os efeitos do machismo, da desigualdade desfavorável à sua atuação produtiva, como também ao seu reconhecimento enquanto trabalhadora, cidadã e líder rural. Conforme dados da Organização das Nações Unidas (ONU), em média, as mulheres compõem mais de 40% da força de trabalho agrícola nos países em desenvolvimento, sendo que em partes da África e Ásia, este número pode ultrapassar os 50%. Contudo, o número de mulheres proprietárias de áreas de plantação não ultrapassa 20%.
Vânia Marques Pinto, de 38 anos, primeira mulher a ocupar o cargo de secretária de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura-Contag, explica que falar da disparidade de gênero no espaço agrícola é ressaltar que a mulher trabalha, mas é invisibilizada, pois quando ela está na roça, o termo que se usa é que ela está ajudando na lavoura, quando, na verdade, ela está trabalhando da mesma forma que o companheiro.
“Quando nós observamos também o acesso às políticas públicas, percebe-se que há uma diferença muito grande, porque são as mulheres que menos acessam às políticas públicas. Por isso, é fundamental que se discuta o acesso à terra, ao crédito, à assistência técnica, por parte das mulheres.”
Nascida no município de Iraquara, Bahia, atualmente Vânia reside entre Salvador e Brasília. Na Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado da Bahia, ela exerce o papel de secretária geral. Também atua, tanto na secretaria de Políticas Sociais, Esporte e Lazer da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil- CTB, quanto na secretaria de Política Agrícola da Contag.
A sua trajetória enquanto agricultora familiar, começou por meio da Reforma Agrária. “Eu lembro que, em 2004, eu fui para uma área de acampamento, que depois passou a ser um assentamento, e nesse período foi onde também conheci o movimento sindical, conheci o sindicato, e comecei a exercer a minha militância dentro do movimento”, explica.
O trabalho que tem feito, juntamente com os demais membros da Confederação, é de fortalecimento da Agricultura Familiar, para consolidar as unidades, compreender o núcleo da família em sua essência e também fortalecer esse público que, de certa forma, é mais fragilizado por ter menos acesso às políticas públicas.
Na secretaria, Vânia Marques também busca apoiar, atuar e fazer proposições de políticas para as mulheres. “Compreendo que nós mulheres somos as pessoas que menos acessam essas políticas, então, ao longo da minha trajetória, eu sempre defendi e pautei as questões das mulheres”, afirma.
Para Regina Dantas de Carvalho, atual presidente da União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária na Bahia (Unicafes), é preciso dar visibilidade à presença da mulher na Agricultura Familiar. Segundo ela, iniciativas podem ser implementadas para aumentar a representatividade da mulher como líder agrícola e líder em cargos de presidência de associações ou cooperativas.
Uma dessas iniciativas é a formação, pois é através do conhecimento que as mulheres se sentem mais seguras para ocupar cargos diretivos. “Além da formação, outras ações que podem ser tomadas para reduzir a disparidade de gênero no setor agrícola é o acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf Mulher) e posse ao título da Terra”, completa.
Regina Dantas, conhecida popularmente como Tia Rege, é natural e residente de Vitória da Conquista-BA. A diretora foi uma das fundadoras da Cooperativa Mista dos Pequenos Cafeicultores de Barra do Choça e Região (Cooperbac).
Como reconhecimento pelo seu trabalho na cooperativa, ela recebeu uma homenagem em um café tipo arábica, o Café Tia Rege. “Atualmente eu trabalho com o cooperativismo da Agricultura Familiar e Economia Solidária, incentivando, orientando, ajudando na constituição de cooperativas, com o objetivo de produzir com qualidade e quantidade para alcançar mercados”, destaca.
A sua relação com a Agricultura Familiar vem pelo exemplo de seus pais, que também eram agricultores. Durante a sua vida, sempre buscou organizar a comunidade, começou nos Centros Cívicos Estudantil, associações de moradores, de pequenos produtores rurais, e por último, o Cooperativismo da Agricultura Familiar e Economia Solidária. Segundo Tia Regi, isso aconteceu “por entender que só juntos, juntas, unidas e unidos, é possível vencer”.
Atualmente, Tia Rege faz parte da diretoria executiva da Associação Unicafes Bahia, da Confederação Unicafes e está na presidência da Federação Unicafes Bahia. Essas Instituições realizam um trabalho de apoio desde a sua constituição até a comercialização dos produtos de agricultores familiares. “Cooperativismo com objetivo de fortalecer cada vez mais os agricultores familiares e também numa perspectiva de defesa do ambiente, produzindo alimentos saudáveis”, afirma.
Miraí dos Santos Rocha Alves, moradora da zona rural de Poções, nasceu em uma família de agricultores e há 20 anos participa de uma associação, na qual foi presidente por quatro anos, tesoureira por oito anos e também conselheira fiscal. Segundo ela, os principais desafios que enfrentou como mulher agricultora em um setor predominantemente masculino foi mostrar a sua capacidade, lidar com a ideia de que a mulher é o “sexo frágil “e conseguir respeito da maioria.
Para Miraí Alves, a presença feminina na agricultura familiar é muito importante, pois a mulher consegue ser mais organizada e criativa, sabe lidar com situações que contribui muito para a área, principalmente em beneficiamento de culturas agrícolas. “As iniciativas, acredito que podem ser implementadas para aumentar a representatividade da mulher como líder agrícola ou líder em cargos de presidência de associações ou cooperativas, são as capacitações e acompanhamento técnico, como associativismo e cooperativismo”.
A produção de Miraí Alves é variada, ela é apicultora, também tem plantação de umbu gigante e produz outros alimentos. De acordo com a produtora, recentemente a comunidade em que está inserida foi contemplada com o projeto Bahia Produtiva, onde 80% dos beneficiários são mulheres que produzem e comercializam hortaliças, obtendo uma renda extra. “Para as mulheres jovens quero incentivá-las a participar dos movimentos realizados na comunidade e a participação em intercâmbios, para conhecer histórias de outras mulheres que vivem no meio agrário e se tornaram muito importantes para a agricultura do país e das regiões onde vivem”, completa.
Qual a importância da Agricultura Familiar no mundo?
Segundo a ONU, mais de 80% de todos os alimentos produzidos no mundo têm origem em propriedades familiares. A importância desse modelo despertou um incentivo para que a ONU decretasse que a década correspondente entre 2019 e 2028 é dedicada à Agricultura Familiar, e estabelece uma série de ações como criação de ambiente político favorável para fortalecer e apoiar a juventude, garantir a sucessão rural do modelo, promover a equidade de gênero e o papel de liderança das mulheres da Agricultura Familiar, entre outros planos para intensificar a prática. No Brasil, de acordo com o IBGE, a Agricultura Familiar é a base econômica de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes.
Em agosto deste ano um avanço fundamental para a agricultura familiar aconteceu no Brasil, a publicação da Lei 14.660/2023. Que visa a promoção da igualdade de gênero, fortalecer a agricultura familiar e garantir que as compras públicas beneficiem comunidades rurais em todo o país. A nova lei torna os grupos formais e informais de mulheres um grupo prioritário nas compras de produtos da Agricultura Familiar. Quando os municípios comprarem alimentos de famílias rurais individuais, pelo menos 50% do valor dessas compras deve estar em nome das mulheres, promovendo o protagonismo feminino no setor. As mudanças na lei entraram em vigor a partir deste ano.
Emily Chaves é estudante do 6º período do curso de Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Ela foi contemplada com a bolsa de reportagem do Site Coreto e supervisionada pelas jornalistas Leila Costa e Raquel Rocha.