“Quando você decide se assumir e ser quem você realmente é, você abre mão de muitas coisas. E uma das coisas que eu tive que abrir mão foi das questões que eu gostava de fazer. Eu gostava de sair de casa, eu gostava de estar em público. E depois que eu passei pela transição, eu meio que me segurei mais em casa”.
É assim que Sofia Souza, concluinte do Ensino Médio e atualmente estudante para vestibular e ENEM, conta como sua vida mudou a partir do momento em que começou a sua transição. A falta de apoio da família, a resistência em aceitá-la e a relação conflituosa e de violência com o pai não deixou outra alternativa à adolescente que, aos 16 anos, saiu de casa. “Ele me ameaçava, me xingava, usava palavras horríveis pra me ofender. Eu tive que recorrer à delegacia para poder fazer denúncia.”
Sem ter para onde ir, Sofia buscou ajuda do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e foi encaminhada para lares temporários. Nesse processo, ela precisou mudar de cidade com a família que a acolheu, mas a nova rotina não foi fácil e, por não conseguir se adaptar, Sofia retornou à Poções. “Quando eu voltei, eu não tinha onde ficar. Então, o único lugar que eu tinha a esperança de poder ficar era na casa que eu estou atualmente, que é uma casa da minha mãe. A minha mãe abriu mão da casa pra eu poder ficar. Mas quando eu cheguei eu não tinha fogão, eu não tinha geladeira, eu não tinha água e luz.”
Ao retornar, as ocorrências de ameaças do pai também voltaram e por falta de água e luz na casa em que estava, Sofia foi encaminhada a uma nova residência, a casa de Janaína Jabbur.
Janaina é ativista e coordenadora da ONG Mães da Resistência no estado da Bahia e, desde o episódio de transfobia sofrido pelo seu filho, ela passou a acolher e a lutar pelos direitos das pessoas trans no município de Poções. Com esses acompanhamentos, ela percebe como a ausência de políticas públicas eficazes afetam a dignidade e marginalizam os corpos de pessoas trans. “A gente não tem hoje aqui em Poções uma casa de acolhimento. Não adianta ter outros suportes se a pessoa não tiver para onde ir. Isso obriga elas a voltarem para o local de violência. E se você enviar essa pessoa para a casa de acolhimento em outro município, ela ainda é mandada para um local que tira do seu vínculo de amizade e que a isola mais do mundo.”

Isabela Vieira é artista e dançarina de um grupo de quadrilhas juninas de Poções. Natural de Salvador, ela conta que sua vida é um desafio diário, com rastros de violência em diversos momentos de sua existência. Vítima de violência sexual quando ainda ainda morava em São Paulo, a artista conta que, após o episódio, ficou o trauma e a insegurança de sair. “Sempre vai existir essa insegurança de sair sozinha, tanto que já cheguei a pedir que um ex-namorado, que eu tive recentemente, se matriculasse no mesmo curso que eu, porque o curso saía 22h, para eu não voltar só”.
Mesmo acreditando que a violência física pode ser maior nas grandes cidades, devido ao que viveu, Isabela não anda sozinha e conta sobre as violências psicológicas que já enfrentou e enfrenta. “A cidade que tem pouco acesso à informação tem muitas violências que as pessoas não sabem que elas existem, por exemplo, a violência psicológica que é tão grave quanto a física e as pessoas acham que o fato de a pessoa não ter agredido não foi uma violência”.
Tanto Isabella, quanto Sofia relatam as violências que já vivenciaram em público, ao não terem o direito ao uso de seus nomes respeitados, ou até pelo direito ao acesso à saúde. “Pessoas acham que a mulher trans não deve passar por exames básicos. Em um posto de saúde, por exemplo, eu tinha basicamente que implorar para usarem o meu nome social ao invés do meu nome morto,” conta Isabella Vieira.

A transfobia no Brasil
De acordo com a 8° edição do Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras, divulgado em 2024 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil se mantém pelo 16° ano consecutivo como o país que mais mata pessoas trans no mundo, com 122 assassinatos. Mesmo com uma queda, em relação a 2023, a associação alerta para a subnotificação. “Quando uma notícia chega aos jornais, seria natural imaginar que esses casos estariam registrados nos órgãos responsáveis, como delegacias, Institutos Médicos Legais (IML) ou secretarias de segurança pública. Mas a realidade mostra o oposto”, informa o dossiê. A subnotificação, em muitos casos, está relacionada à ausência de dados oficiais nos noticiários e ao não reconhecimento da identidade de gênero da vítima.
Os dados do relatório também evidenciam um cenário que coloca o Brasil como o país do transfeminicídio. Nos últimos oito anos, período em que o relatório da ANTRA foi realizado, os assassinatos de mulheres trans e travestis representam 97% dos casos. Em 2024, dos 122 assassinatos mapeados, 117 foram de travestis e mulheres transexuais. O cenário deixa explícito “que a violência de gênero, a motivação, assim como a própria escolha da vítima tem relação direta com a identidade de gênero (feminina) expressa pelas vítimas”, afirma o relatório.
Quanto à idade, as vítimas são jovens entre 15 e 29 anos, sendo que 78% das vítimas eram negras vivendo em um contexto de vulnerabilidade social.
A ANTRA também apresenta dados sobre a transfobia por região e por estados. Em 2024, o Nordeste foi a região com o maior número de assassinatos, com 41% dos casos; seguida da região Sudeste, com 34% e o Centro-Oeste com 10% casos; o Norte, com 8%; e o Sul com 7% dos casos. Nos oito estados em destaque na pesquisa, os dados mostram que a Bahia ocupou a 3ª posição em número de casos de violência nos últimos oito anos e, em 2024, ficou na 5ª posição.

Gabi Bonfim Cruz é cantora, psicóloga e pesquisadora. Em sua pesquisa de mestrado, ela estudou sobre alguns aspectos semânticos da ideia de incongruência de gênero para questionar a patologização trans, na CID-11. Atualmente, doutoranda pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, ela pesquisa sobre a expressão travesti durante o século 20, a partir de um viés semântico. Ela conta que as estatísticas sobre a transfobia no Brasil não mentem. “Gostaria muito que fosse um exagero, como algumas pessoas dizem, mas não é. Não estamos no Ensino Superior e nas Pós-Graduações por muitos motivos.”
Para Gabi Cruz, o espaço público é desafiador e traz preocupações frequentes às pessoas trans. “Sair de casa também implica um novo desafio, a gente nunca sabe se vai ser só assediada ou se seremos assediadas e ameaçadas de morte.” Ela também relata sobre as preocupações no existir diário, no sair de casa e ter que passar o dia em espaços públicos. “A questão dos banheiros, uma questão conhecidíssima.”
“Uma incongruência como essa por si só já afeta pesquisadoras, que não são tantas assim, mas afeta trabalhadoras, que também não são tantas, porque também nós não podemos trabalhar, mas afeta a nossa existência no espaço público,” explica Gabi Cruz.

Para a pesquisadora, são inúmeras as aflições quanto ao uso de banheiros públicos. “No sair de casa você já vai pensando como é que é o banheiro num lugar. Aí você pensa, ‘não tem banheiro individual’, não é só uma cabinezinha que a pessoa entra e fecha a porta, é um banheiro com vários banheirinhos, com vários sanitários dentro, então isso significa que estando no banheiro eu vou ter que… é possível que eu interaja com alguém. Aí você pensa assim, ‘nossa, mas interagir com alguém, significa falar, e minha voz é minha voz, e isso pode… e se eu coagir alguém. Alguém pode se assustar e ter medo disso, ou isso pode ser um pressuposto para alguém me abusar’”.
Dados divulgados na Nota Técnica sobre Direitos Humanos e o Direito aos Banheiros, publicada pela ANTRA em 2023, mostram que um estudo realizado pela Universidade da Califórnia apontou que 54% das pessoas trans entrevistadas enfrentaram problemas de saúde devido à falta de acesso a banheiros públicos. O estudo revelou também que cerca de 70% dos participantes relataram dificuldades ao utilizar banheiros, tendo vivenciado ofensas e/ou agressões físicas nesses espaços.
Os impedimentos ao uso de banheiros públicos também podem acarretar problemas à saúde das pessoas trans, como a desidratação e a infecção urinária. “E é isso que faz com que eu não beba água antes de sair, ou eu não saia de casa, dependendo da quantidade de água que eu bebi, porque eu vou fazer o quê? Independente da pessoa concordar com essa questão, uma coisa é fato, isso impede pessoas de irem trabalhar, impede pessoas de irem pesquisar, e é uma coisa tão simples. Podem até pensar, ‘poxa Gabi, isso não tem nada a ver com uma história tão dolorosa que a gente escuta’. Mas não é doloroso, porque ela tem onde mijar”.
Janaina Jabbur relata a preocupação que tem ao acompanhar as meninas em atendimentos de saúde no município. “A gente não tem uma saúde voltada para esses corpos trans, para essas pessoas. A gente vem lutando muito dentro de Poções.”
Um atendimento humanizado e respeitoso é o que defende a psicóloga, Gabi Cruz. “Tenho que lutar por uma psicologia mais honesta e mais justa. E esse foi o motivo de eu ter continuado na psicologia e de atuar hoje como psicóloga: tentar oferecer um serviço de atendimento as outras, como eu, em que essa patologização não está ali, em que essa violência, essa culpabilização não esteja ali, em que essa pessoa não seja terminada de ser empurrada para a morte.”
Para Gabi, o profissional da psicologia e da saúde em geral precisa oferecer um atendimento qualificado, que não patologize e que acolha. “É essencial para que a pessoa sobreviva a esse mundo hostil a ela. Não estou dizendo que a psicologia é a solução, porque a solução é uma solução de classe, vamos ser sinceras, o que ferra a vida de travesti tem nome, patriarcado. A psicologia, ajuda a acolher, a deixar essas trabalhadoras, essas mulheres vivas, a trazer um pouco de alento e um pouco de dignidade.”
Vida profissional, conquistas e representatividade
Mesmo com experiências profissionais em seu currículo e capacitação profissional, Isabela Vieira narra que em seleções de empregos da cidade, ela nunca é a escolhida. “Participei de uma seleção aqui e eles gostaram do meu currículo, só que eu não fui aceita. A gente consegue ver nitidamente que isso aconteceu pelo fato de eu ser trans e não por eu não ter capacidade de estar no cargo.”
Um estudo divulgado pela GloboNews revela que somente 0,38% dos postos de trabalho no país são ocupados por pessoas trans. E que parte das pessoas trans que estão trabalhando, estão ocupando cargos de baixa remuneração ou posições que não correspondem às suas qualificações. “Existe sempre essa questão de a gente ter que tentar se provar que a gente é boa mesmo”, destaca Isabela.
Gabi Cruz destaca que teve e tem desafios no percurso acadêmico. “Ainda que eu esteja num grupo de pesquisa maravilhoso, que as pessoas me acolhem, num programa também maravilhoso em que eu sou respeitada, e é importante dizer isso, a gente passa por alguns desafios que ninguém vê, e esses desafios, às vezes, fazem a gente ter dificuldades de tirar a cabeça do travesseiro e ir para a instituição”.
Mesmo com os desafios que enfrenta, Gabi sabe a importância de suas conquistas como motivação e inspiração para outras meninas trans. E é essa representatividade, de ver mulheres trans ocupando espaços, que movem Isabella Vieira e Sofia Sousa a persistirem em seus sonhos. Sofia conta que se inspira muito na vida e carreira da Deputada Federal Erika Hilton (Psol). “Quando você vê ela exercendo algo que poderia ser você ali, você fica cheia de esperanças. É muito difícil você ter esperança em algo que é difícil de acontecer. Mas quando você vê ela ali, é incrível,” conta Sofia.
“É uma mulher que me inspira, que eu me baseio nela, pois ela tem uma dicção perfeita, ela é muito inteligente, formada. Ela é literalmente alguém que eu gostaria de ser no futuro. Não é ser ela, mas é ter a força e a coragem que ela tem de enfrentar homens machistas opressores dentro da Câmera e ela consegue encarar isso e ter peito para ir contra eles” revela Isabella Vieira.
Para Gabi Cruz, o caminho não é e não será fácil, “você vai encontrar nesses espaços de Ensino Superior todas essas incongruências que eu já falei”. Mas a pesquisadora clama que esses espaços devem e precisam ser ocupados por mulheres e pessoas trans. “Se o mercado de trabalho é como é hoje, com suas incongruências e violências, esse é mais um motivo para a gente estar lá. […] Eu preciso de vocês lá também, preciso de mais pesquisadores comigo, brigando por uma ciência mais justa para pessoas trans e travestis, para mulheres travestis, brigando por uma universidade que a gente possa fazer xixi, que a gente possa comer e que a gente possa transitar. Lutando por um mundo em que a gente possa consumir cultura, e que a gente possa viver enquanto humanas, […] a gente precisa de pessoas como nós, ou pessoas que saibam da nossa existência e que respeitem a nossa existência, formando professores, formando novos profissionais, sendo novos profissionais, sendo profissionais diferentes no mercado de trabalho.”
Vale a pena conhecer
Ainda que considerados poucos, alguns direitos já foram conquistados pelas pessoas trans ao longo dos anos. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), uma iniciativa destinado a apoiar projetos que atuam na promoção dos direitos da comunidade LGBTQIA+, mapeia, em sua página, iniciativas que visam a solidariedade, a cidadania e mudanças para a população, além de apresentar ferramentas, órgãos de conselhos, centros de referências, órgão de segurança pública e saúde LGBTQIAP+. No Mapa da Cidadania, é possível encontrar ações por estado. Basta clicar na legenda com o nome do estado e descobrir quais ações são disponibilizadas e onde elas se encontram.
