Uma questão de Saúde Pública: os impactos físicos e psicológicos da endometriose

Por Daniela Palmeira
Publicado em 13/03/2023

Durante seu ciclo menstrual, tudo que Geisa Vieira, 31 anos, sentia era dor, uma dor intensa, como cólicas que pareciam tomar conta de todo seu corpo. Essa dor já não lhe era estranha, durante alguns anos se fez uma infeliz companheira. “Eu sofria e sofria, até que chegou um tempo que eu estava com as cólicas tão fortes, tão fortes, que eu tinha que ir para o hospital quase desmaiada de dor”, relembra Geisa.

Mas nem sempre foi assim, apesar das cólicas serem comuns desde sua primeira menstruação, o impacto no seu cotidiano era muito menor. Com o passar dos anos, as dores aumentaram, tornando-se cada vez mais fortes e frequentes. Em cada episódio de dor, a preocupação de Geisa aumentava, ela sabia que aquilo não era normal. Por isso, fez diferentes exames, consultas a médicos e ginecologistas, ficou surpresa ao saber deles os resultados: estava tudo normal. “Eu sempre passava em ginecologistas e nenhuma dava um parecer do que eu tinha, do que seriam essas dores, eu fazia transvaginal, dava tudo certo”, conta. Ela não ficou satisfeita, pois as dores continuavam.

Uma característica da personalidade de Geisa é ser curiosa, foi isso que a levou a pesquisar sobre endometriose, o que é, quais os sintomas e formas de identificar. Ela ficou convencida de que provavelmente estava com a doença, mas não recebeu apoio da ginecologista que frequentava. “Eu disse a ela que eu estava desconfiada que tinha, só que ela negou, disse ‘ah não, você não tem isso’”, relata. Ela resolveu ouvir a opinião de outros médicos, esperou algum tempo para ser encaminhada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), relatou sua experiência para o médico e perguntou se ele poderia passar uma ressonância magnética da pelve. Após realizar o exame, o diagnóstico confirmava as dúvidas de Geisa: ela estava com endometriose.

O diagnóstico tardio trouxe impactos para a vida de Geisa.

Mas afinal, o que é endometriose?

A endometriose é uma doença silenciosa, não necessariamente pela falta de sintomas, mas por ser difícil de diagnosticar em exames ginecológicos de rotina, por exemplo. Isso porque essa é uma doença inflamatória provocada pela descamação do endométrio, camada que reveste a parede interna do útero. Essa descamação ocorre no período menstrual e, ao invés de serem eliminadas durante o ciclo, seguem outra direção, sendo comumente encontrados na própria região da pelve, como por exemplo, nas trompas uterinas, ovários ou no fundo do útero. A cada período menstrual o endométrio continua a proliferar e o ciclo reinicia.

A doença é mais comum do que se imagina. Segundo dados do Ministério da Saúde, a endometriose atinge uma em cada dez mulheres no Brasil. Em nível mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 180 milhões de mulheres convivam com o problema. No entanto, a doença e seus sintomas ainda são desconhecidos e/ou ignorados por mulheres, família, empregadores e até mesmo médicos.

Izabel Souza, 35 anos, já convive com a doença há 10 anos, e teve dificuldades no processo de diagnóstico. “O início da doença foi muito complicado porque os médicos não estavam preparados”. Inúmeras vezes ela precisou ouvir que “dor é normal”, ainda que frequentemente precisasse ser encaminhada ao pronto-socorro ou hospital para ficar internada. Mesmo depois de ter certeza do diagnóstico, Izabel enfrentou críticas, pelo fato da doença estar associada à menstruação. “É uma doença que as empresas não entendem, porque eles acham que a mulher está fazendo corpo mole. Só que ela incapacita demais a gente. Até na própria família, no início tinha gente que falava que era frescura.”

A ginecologista e obstetra Ana Carolina Coelho, já atendeu em seu consultório muitas pacientes que, apesar de ter o diagnóstico de endometriose, não entendiam o que era ou o que ela causava de fato. Isso foi algo com o qual Geisa, por exemplo, precisou lidar. Logo depois de ser diagnosticada, ela se sentiu desnorteada, aflita e com medo, pois ainda não tinha plena noção de como aquilo iria impactar em sua vida, muito menos, quais caminhos deveriam tomar para se sentir mais segura. Ela esperava que seu médico lhe desse orientações, mas sua única atitude foi sugerir que ela fizesse uso de um anticoncepcional. “Eu fiquei desassistida”, relembra Geisa.

Em outros casos, a médica percebe também, a influência de questões socioeconômicas que levam a própria mulher que sofre com a doença, a aceitar que a dor “faz parte” ou “é frescura”, algo que não deve ser valorizado. Além disso, os exames para identificar a endometriose são muito caros, o que para a Dra. Ana Carolina, diminui ainda mais as oportunidades de investigação da doença. No entanto, ela alerta: “quando isso atrapalha você, todas as suas atividades diárias, deixa você de cama, fica impossibilitada, precisa ir pra emergência, isso não é normal, então deve ser investigado.”

Alguns sintomas da endometriose, como as fortes cólicas, são mais conhecidos, um indicativo característico para começar a levantar suspeitas. Enquanto isso, outros sintomas agem de formas menos perceptíveis, é o caso da invasão de outros órgãos pelo endométrio. Isso acontece porque, com o passar dos ciclos menstruais, o endométrio continua a se reproduzir. “É um um ciclo contínuo em que, por conta disso, acaba sendo uma doença progressiva”, afirma a médica.

Hoje, essa é a realidade de Izabel, a doença, no seu caso, atingiu o seu nervo ciático. Em episódios de crise, quando a dor ataca, ela fica impossibilitada de realizar atividades simples, como andar normalmente. Sentir-se incapacitada pela dor afeta Izabel, pois ela sente a necessidade e urgência de viver sua vida, cumprir suas obrigações e fazer o que quer. Perceber que não consegue realizar tudo isso por causa da endometriose, o que impacta diretamente seu psicológico.

Izabel souza, uma dos idealizadores do projeto

Os impactos psicológicos da endometriose

Geisa tem o sonho de ser mãe. Um desejo poderoso, que há muito tempo carrega em seu coração. Mas a endometriose abalou seus sonhos. Além de tudo que sente fisicamente, ela reparou que algo dentro dela desmoronava. Geisa não tinha mais as certezas de que seria possível. “Tudo isso corre na minha cabeça, não só o físico, aquela dor, mas o psicológico. Então você fica ‘será que eu vou conseguir  ter um filho?’ Porque ela atinge, né? Muitas mulheres não conseguem, então assim, tudo isso é um sofrimento”, conta Geisa.

Seu psicológico foi afetado, depois do diagnóstico da doença Geisa chorava e se perguntava o por quê daquilo estar acontecendo com ela, um fardo difícil demais de carregar sozinha. A partir desse momento, ela decidiu procurar ajuda psicológica e graças a isso conseguiu forças para continuar lutando contra a doença e pelo seu sonho de ser mãe.

Izabel desenvolveu um quadro depressivo antes da descoberta da doença. Era uma constante aflição sentir tantas dores, ir continuamente a hospitais e não saber o que estava acontecendo com seu corpo. Nesse período, ela tomava 17 comprimidos por dia, remédios que médicos passavam para combater um mal que nem eles mesmos sabiam qual era. “Com isso, na época, veio a depressão, porque a endometriose afeta o psicológico da gente, e muito.” A procura de ajuda psicológica também fez parte do seu tratamento contra a doença. 

Tratar a endometriose é um caminho que pode ajudar as mulheres a lidar com a carga psicológica da doença. Para a ginecologista Ana Carolina Coelho, a endometriose deve ser tratada da forma mais multidisciplinar possível, com a assistência de fisioterapeutas, nutricionistas e especialmente psicólogos, pois há uma maior chance de desenvolver sintomas depressivos.

A médica afirma ainda que o tratamento da endometriose consiste essencialmente em três bases. Na dieta, pois é fundamental que as mulheres evitem alimentos inflamatórios e tenham uma alimentação saudável, personalizada e que contemple as suas necessidades. Na atividade física, que ajudará na qualidade de vida e também pode ajudar na intensidade dos sintomas. E no tratamento hormonal, feito a partir do uso de anticoncepcionais, que acaba controlando a proliferação do endométrio e bloqueando a ovulação. 

Dra. Ana Carolina Coelho – Ginecologista e Obstetra

O ideal é sempre “tentar o mínimo possível de cirurgia”, explica a ginecologista, mas em casos específicos a cirurgia pode ser a melhor forma de tratar a endometriose, principalmente em mulheres que têm o desejo de engravidar. Embora haja o medo da infertilidade associada à endometriose, a médica previne que não necessariamente a condição de ter a doença, significa que a mulher será infértil. “Apenas 40% dos casos de endometriose cursam a infertilidade, o que é bastante quando a gente para pra ver, mas não é a maioria e muito menos o total absoluto.”

Projeto de Lei institui o programa municipal de divulgação, prevenção e tratamento da endometriose

Izabel já fez diferentes tentativas de tratamento e passou por duas cirurgias. Hoje, seu tratamento acontece no Hospital da Mulher, e para chegar até lá, ela precisa enfrentar uma média de sete horas de viagem de Poções até Salvador. O transporte acontece por meio de veículos disponibilizados pela Secretaria de Saúde de Poções. Contudo, o veículo que faz o transporte até a capital baiana nem sempre se adapta a sua necessidade, visto que agora pela endometriose ter atingido seu nervo ciático, passar por longas viagens exige muito cuidado. “A Secretaria de Saúde tem que ter um olhar com mais amor pra esse lado”, enfatiza Izabel.

Conviver a tanto tempo com a endometriose, passar por experiências variadas por causa disso, e ver outras mulheres que também sofrem com essa realidade, levou Izabel a querer mudar o seu entorno. Atualmente ela trabalha como assessora parlamentar do vereador Diogo Chulu e viu nessa relação a oportunidade de sugerir ao vereador a criação e estruturação de um projeto de lei voltado para a saúde de mulheres com endometriose. Por ter uma atuação que dá amplo espaço para as causas femininas, Izabel apresentou a ideia também para a vereadora Larissa Laranjeira. 

Diogo Chulu conta que já tinha um conhecimento básico da doença, pois já acompanhava a situação da assessora, mas foi na estruturação do projeto que começou a entender melhor os impactos e riscos da endometriose. Para Larissa Laranjeira, a doença ainda era algo desconhecido, é durante as pesquisas para o projeto que ela passa a compreender como a endometriose é um problema social e de saúde pública que afeta uma grande parcela de mulheres.

Dessa forma, o projeto de lei nasce da parceria de vereadores da situação Larissa Laranjeira (PCdoB) e da oposição Diogo Chulu (PSD), que apesar das divergências políticas, acreditam na força do coletivo e do diálogo, como a melhor forma de representar os cidadãos no âmbito legislativo. Nesse sentido, a ideia do projeto é instituir um programa municipal de divulgação, prevenção e tratamento da endometriose. Para Diogo, conscientizar e capacitar profissionais, família e a sociedade em geral, é uma alternativa para tentar diminuir o sofrimento que a doença pode causar.

Larissa acredita que é preciso dar visibilidade ao problema, de modo que seja possível provocar uma mudança. “A informação e a formação são uma maneira de acelerar esse diagnóstico [da endometriose], e o nosso município precisa disso, todo projeto de lei que parte de uma realidade que existe, eu identifico como uma ferramenta pedagógica de mudança cultural também.”

O Projeto de Lei 011/2023 foi apresentado na Câmara de Vereadores e já passou pela primeira votação, no dia 6 de março, seguirá para uma segunda votação na Câmara, para enfim chegar ao executivo onde pode ser aprovado ou ser vetado. A possibilidade de veto é um receio dos vereadores, visto que o projeto carece de recursos financeiros da saúde, Larissa diz que vem tentando diálogo com a Secretaria de Saúde, mas as tentativas foram frustradas, até o momento. 

Diogo salienta que é necessário parcerias e cobranças a fim de levar benefícios que possam melhorar a vida de mulheres que sofrem com a doença. “Se não for criado as políticas públicas que realmente cuidem da saúde das pessoas, a gente não vai conseguir caminhar muito porque quase todos os problemas, principalmente os que são permanentes, é necessário o acompanhamento”, relata Diogo.

Fotos: Freepik/ Arquivos pessoal

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