Alegria e tradição: a cultura do Terno de Reis no município de Poções

“O costume da gente vem dos mais velhos, né? De bisavô pra avô e de pai pra filho”, conta José Bispo dos Reis, conhecido como Seu Zé Preto, de 74 anos, sobre como começou sua trajetória à frente do Terno de Santo Reis Bumba Meu Boi. A tradição do Terno de Reis fez parte da vida de Seu Zé Preto desde a primeira infância, quando saía agarrado às costas de seu pai pelas casas cantando e tocando instrumentos na zona rural de Poções.

Quando completou 20 anos, o pai de Seu Zé Preto lhe entregou o grupo para que ele desse continuidade a tradição da família. Atualmente já são 54 anos na liderança do Terno de Reis, mas sua participação perdura ao longo de toda a sua vida. 

Tanto para Seu Zé Preto, quanto para outras pessoas que saem com grupos de reis, e também as pessoas que recebem os grupos em casa, os últimos momentos do ano anunciam a chegada das aguardadas festividades de Reis que ocorrem entre os meses de dezembro e janeiro em comemoração o período dedicado aos Reis Magos e a São Sebastião. Em Poções, a tradição ainda persiste por meio dos grupos de Terno de Reis como o de Seu Zé Preto, que mantém viva a herança cultural transmitindo-a de geração em geração. 

O Terno de Reis é uma tradição religiosa de origem portuguesa, trazida para o Brasil no século 18, que homenageia a jornada dos três Reis Magos. “Seja no Brasil, seja em Portugal na Península Ibérica, ela tem sua origem no campo, e está relacionada principalmente a essa questão do camponês, de uma boa colheita e de prosperidade”, afirma Alan Conceição, integrante do grupo Reis São Sebastião das Estrelinhas, geógrafo e pesquisador da cultura do Terno de Reis e sua relação do campo com a cidade, no município de Poções.

De acordo com Alan Conceição, assim como em outros lugares do Brasil, em Poções, as pessoas que faziam parte do Terno de Reis na zona rural e tiveram que se deslocar para a zona urbana da cidade trouxeram com elas esse costume que vem resistindo dentro e fora dessas famílias até os dias atuais.

A cultura do Terno de Reis em Poções 

A tradição do Terno de Reis em Poções é antiga e muito popular e se desenvolveu na zona rural do município. “Em específico aqui em Poções, há registros de que o reisado tem mais de 100 anos de existência”, conta Alan Conceição. 

Segundo o pesquisador, os principais elementos que caracterizam os grupos de Terno de Reis em Poções e nos arredores estão presentes nos instrumentos utilizados pelos reiseiros. “São dois tambores conhecidos como tambor caixa, tem-se o bumba que é parecido com uma zabumba, triângulo, pandeiro e gaitas. Alguns Ternos de Reis terão variações, como o reco-reco, a palma, a viola e a sanfona”. Alan Conceição destaca ainda a  importância das vestimentas que exibem os reiseiros, em alguns casos apresentam estampas floridas e cores chamativas, com adereços de cabeça também coloridos. “Remete muito aquela questão da alegria na forma de cantar.”

Os ritmos contidos nos cantos e uso dos instrumentos entre os grupos de Terno de Reis são variados. “Canto do reis é um pouco mais lento e o samba é mais frenético, assim como samba de roda, assim como samba de capoeira, assim como maracatu”, diz Alan Conceição. Esses estilos também podem variar em outras regiões levando em conta a cultura e costumes de cada lugar e a forma que os reiseiros encontraram de adaptar a tradição em seus próprios contextos. 

Considerando o cenário em que o reisado nasce na região de Poções, as influências culturais fizeram com que as características presente na tradição se tornassem únicas.  “Com a questão do Sertão da Ressaca tem-se muito essa relação com as culturas indígenas e culturas africanas. Parece muito com catolicismo, é católica, mas se aproxima com uma manifestação de matriz africana com elementos indígenas”, informa Alan Conceição. 

De avós para pais e de pais para filhos 

Neuzide Ribeiro dos Santos, de 58 anos, começou a se interessar pela tradição do Terno de Reis com apenas nove anos de idade tendo como principal influência a sua mãe, Leonora Ribeiro dos Santos. “Minha mãe fez promessa pra sair com Terno de Reis, aí ela faleceu e eu continuei. O Terno de Reis Bom Jesus foi o nome que minha mãe deu”, conta ela.

Por conta da promessa, Neuzide continua saindo com o Terno de Reis Bom Jesus, mas ela também participa dos grupos Santo Reis e São Sebastião onde canta e toca instrumentos. Para ela, a presença da mulher no reisado faz com que outras mulheres sejam influenciadas e se sintam mais à vontade em participar de grupos. “Minhas noras e filhas tocam e acompanham”.

Assim como Neuzide Ribeiro teve influência de sua mãe, Jildo dos Santos, de 52 anos, passou a se interessar pela tradição do Terno de Reis por conta de seu pai. Dos 48 anos de sua vida que dedica ao reisado, participou do seu grupo de Reis na região do Lagoão, município de Boa Nova e quando se mudou para Poções, passou a sair com o grupo Reis São Sebastião das Estrelinhas, mas ainda possui seu próprio grupo que saí na zona rural. 

Em geral, a história da família de Jildo está profundamente atrelada à tradição do Terno de Reis. “Meu avô saía com o terno, aí chegou a data que ele não conseguiu mais e entregou para o meu tio Zaulino. Quando Zaulino não conseguiu mais sair, entregou para o meu compadre”, conta.  Segundo ele, no momento, o seu grupo contém 16 integrantes do qual ele está à frente em parceria com um colega.

Alan Conceição também faz parte do grupo Reis São Sebastião das Estrelinhas e conta que a influência para começar a sair como folião também veio de seu pai Seu Juarez que está a frente do grupo, ativo a mais de 28 anos.  “Eu quando era criança esperava ansiosamente pelas épocas de Terno de Reis, pelo mês de janeiro, quando chegava o natal e a virada de ano eu ficava muito empolgado”. A trajetória de Alan Conceição no reisado começou cedo, com seis anos ele já acompanhava seus pais e irmão nas visitas às casas e apresentações.  

Alan Conceição em apresentação com o Terno de Reis São Sebastião das Estrelinhas

“Eu comecei a tocar afoxé e depois triângulo, com idade de 8 para 9 anos tambor, mas depois eu me especializei na gaita de reis, meu pai e meus tios são muito bons nisso”, conta Alan Conceição. Essa inspiração e vontade de aprender a tocar com sua família fez com que Alan quisesse aprender também a tocar outros instrumentos como o saxofone. “Eu via esses reiseiros como heróis, queria ser reiseiro como eles”.

Alan Conceição e Seu Juarez

Seu Zé Preto diz que também aprendeu a tocar os instrumentos do reisado desde pequeno, e que hoje, quando sai para se apresentar, gosta e faz de tudo um pouco. “Eu canto, toco instrumento, toco gaita, toco bumba, toco caixa e brinco com o boi. Reiseiro que é reiseiro tem que fazer tudo, né?”. Seu Zé Preto diz ainda, que assim como ele, em época de reisado seus filhos e netos saem junto com o grupo e mesmo as crianças menores também já estão aprendendo a cantar e tocar reis. 

Mudanças, preservação e incentivo a cultura do Terno de Reis

É fato que uma tradição que resiste a tantos anos foi se adaptando ao período atual e acabou sofrendo mudanças. “Mudou muita coisa, aquele tempo, a gente saía, tinha muita gente acompanhando e não cobrava nada, hoje pra você sair carece pagar os foliões”, diz Seu Zé Preto. O reiseiro completa afirmando que apesar de tudo, a alegria de receber o Terno de Reis em casa não mudou, e que sempre, em época de Reis, é chamado para se apresentar em outras cidades. 

Jildo dos Santos diz que as pessoas, que gostam da cultura, continuam recebendo o Terno de Reis com muito carinho, porém dentro dos próprios grupos de Reis, atualmente a adesão das gerações mais jovens a tradição é menor.  “A gente sente falta daquelas pessoas mais idosas, como meu avô, meu pai, meus tios, que hoje não aguentam mais, e a gente tem que incentivar para não acabar”. Jildo conta que a situação é a mesma na zona rural, e um dos motivos dessa dificuldade na adesão é que muitos jovens trabalham e, no terno, mesmo que pessoas de fora façam contribuições em dinheiro, o pagamento dos foliões não é certo. “Se sobrar alguma coisa, depois da reza, o que sobrou ali a gente vai dividir para cada pessoa um trocadinho, sabe? Se não sobrar, paciência.”

Para o pesquisador Alan Conceição, por ser uma tradição construída por meio da oralidade, não era algo que as pessoas se preocupavam muito em registrar, porém atualmente, com a ampliação do uso de meios digitais, foram surgindo novas formas de preservar e divulgar a tradição. “Nós temos que conseguir acompanhar esse movimento tecnológico, é muito difícil divulgar coisas que não estejam na internet”, diz. 

De acordo com ele, divulgar os conteúdos do Terno de Reis em plataformas e redes sociais também pode servir de incentivo para as pessoas mais jovens presentes em ambientes digitais. “Esse veículo do ciberespaço da internet, do facebook, instagram, todas essas plataformas são de extrema importância para que nós reiseiros consigamos propagar a manifestação.” 

Dessa ideia de divulgação, registro e incentivo, surgiu o  projeto Porta Aberta e Luz Acesa, idealizado por Alan Conceição e colocado em prática juntamente com outros profissionais da cidade. A ideia central do projeto é “fazer um levantamento de memórias, um acervo de tudo que for possível sobre o Terno de Reis para produzir um livro e fazer um documentário sobre o máximo de reiseiros que nós conseguimos”, diz Alan. Atualmente o projeto que possui oito integrantes  e teve seu início em 2022, sai junto aos grupos de terno de reis para fazer registros, porém ainda com equipamentos amadores. “Nós não temos condições financeiras para comprar equipamento e não temos apoio de ninguém. Nós fazemos porque gostamos e fazemos principalmente com o celular, aquele celular que não capta bem, então muita coisa acaba se perdendo”, conta .

 A geografa e pesquisadora Jessica Martins, que compõe a equipe, afirma que por ser um projeto sem fins lucrativos, além da falta de equipamento, a locomoção se torna mais difícil. “Acaba sendo um desafio para que ele [o projeto] se mantenha vivo e até pra fazer entrevistas em outras localidades, porque o Terno de Reis no município de Poções abrange mais do que só o espaço urbano”, diz. 

Para a equipe do projeto, preservar esses costumes, seja por meio de plataformas digitais, livros e documentários, é uma forma também de preservar a cultura local de uma manifestação cultural popular tão presente no município.

“Falando como pesquisador e como reiseiro, eu nasci e cresci dentro do Terno de Reis então, para mim é muito importante, é imprescindível. Eu respiro Terno de Reis!  Eu acordo cantando Terno de Reis  e vou dormir cantando Terno de Reis”, declara Alan Conceição e reafirma que muito de sua formação como pessoa, como artista e pesquisador vem da sua vivência no reisado. Já para Seu Zé Preto, a importância está em fazer valer a herança de seu pai e continuar a tradição. “Chegar no dia seis, fazer a festa e receber todo mundo, isso para mim é uma alegria”.

Jessica Martins diz que o Terno de Reis é um patrimônio importante para a cultura da cidade como um todo, para ela especificamente, é preservar a memória de uma tradição que teve a oportunidade de viver quando recebia os grupos de Terno de Reis em casa junto a sua família.  “Eu gosto dessa festividade que a tradição do Terno de Reis traz, essa alegria que se mistura com a questão da fé. Você precisa sair todas as noites e manter uma energia viva e trazer para aquelas casas que estão recebendo o Terno de Reis essa mesma energia, porque quem abre as portas, seja por cultura, seja por fé, seja por festa, abre as portas para uma energia celebrativa, festiva”, diz Jessica.  

Aqui em Poções, é possível assistir às apresentações de Ternos Reis em praça pública, normalmente costumam acontecer no dia seis de janeiro. Os Ternos de Reis de São Sebastião continuam com as apresentações a partir do dia 14 do mês em residências dos reiseiros e simpatizantes da cultura.

Fotos: Reprodução da Internet/ Arquivo pessoal/ Nataly Leoni

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