“RACISTA, EU?”

Das manifestações individuais às estruturais, a existência que está em jogo é sempre a nossa.

Digamos que você esteja certa. Você, pessoa que acredita sinceramente que não é racista. Que para completar, ainda acredita que não há racismo no Brasil ou que, se há algum racismo por aqui, certamente ele é expresso em casos isolados e de uma forma muito mais branda do que em outros lugares do mundo. 

Desafiemos a lógica então. Se no Brasil não há racismo, por que ainda vemos pessoas utilizando a expressão “tinha que ser preto mesmo, viu!”, ou, para retirar do enunciado o pesado termo “preto”, “fizemos realmente um trabalho de gente branca, um trabalho perfeito”? Observe que expressões com esse teor não são nada incomuns, são até mesmo corriqueiras. Um tio meu que se considerava branco e que nos amava imensamente, disse certa vez que meu pai “era pretinho, mas era trabalhador”. Ainda que não tenhamos deixado de amar meu tio por isso, a expressão não passou despercebida por mim. Ela denota um estigma racista, segundo o qual ser preto é uma condição negativa que, às vezes, pode ser redimida por determinadas condutas ou determinados aspectos. No caso da fala do meu tio, a pessoa é afeita ao trabalho apesar de ser preta (que segundo a ideologia racista é indolente por natureza). 

A utilização de frases desse tipo evidenciam estereótipos que compõem o imaginário dos indivíduos, mas que de maneira alguma estão isolados. Seria mais correto tratá-los então, como parte de um imaginário coletivo. Um conjunto de ideias preconceituosas que cumpre o papel de naturalizar tratamentos discriminatórios.

Ora, vamos! Tentem encontrar uma saída para explicar aquelas expressões. Busquem uma via que não passe pelo processo histórico de formação do nosso país; que não passe pela inserção de mais de quatro milhões de africanos escravizados no sistema colonial; que não passe obrigatoriamente pelos mais de três séculos e meio de escravidão; que não esteja diretamente ligada ao tortuoso processo de abolição da escravatura; um caminho que não esteja vinculado à construção de uma cidadania que, ainda que não esteja estabelecida assim nas leis, na prática é diferenciada para mulheres e homens “de cor”. E também não se esqueça de somar a tudo isso, a enxurrada de produções culturais que apresentaram durante décadas ou uma imagem do negro como indivíduo subalternizado, ou como portador de todos os vícios e condutas depreciadas pela sociedade, ou como elemento enquadrado por estereótipos sexuais e de pobreza cultural. Depois de levar tudo isso em consideração, talvez possamos entender melhor o porquê de indivíduos portadores de pele branca cometerem a gafe de olhar para uma pessoa negra numa festa e, sem nenhum elemento que a identificasse como tal, achar que ela é uma empregada.

Pare um pouco para tomar um ar. Você consegue respirar? Pronto. Agora voltemos à nossa reflexão. Você pode até se assustar, mas o racismo não está presente em nossa sociedade apenas na forma discursiva. As expressões das quais falamos são, na verdade, a ponta de um enorme iceberg, com o qual não devemos deixar de lidar, mas que não encerra a questão. Ainda que sejam expressão de um imaginário coletivo, como falamos antes, aquelas frases são ditas por indivíduos e isso pode nos passar a impressão de que o problema é uma questão de comportamento individual. Nesse caso, os racistas seriam pessoas mal-educadas que não sabem tratar os outros; pessoas que fogem às normas da boa educação. No entanto, essas pessoas são muito bem-educadas. Elas são educadas de acordo com o caráter racista que é elemento estruturante das nossas relações sociais. Não devemos tomar o racismo como “burrice”, como cantou o Pensador. Ele se constrói a partir de uma lógica bastante clara de hierarquização da sociedade, uma lógica que possui sua racionalidade. Essa hierarquização, justificada por critérios raciais elaborados por teorias pseudocientíficas de meados do século XIX, estabelece espaços de opressão e exploração para determinados grupos sociais.

Longe de ser unicamente um fenômeno ético ou psicológico de caráter apenas individual, o racismo se manifesta como uma decorrência da própria estrutura social. Ou seja, ele faz parte do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares da nossa sociedade. O racismo é uma regra, não uma exceção, por isso o consideramos estrutural (Almeida, 2020).  Talvez, para melhorar a nossa compreensão, possamos entendê-lo como um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo (Ribeiro, 2019). Fazendo nossas as palavras da historiadora Lilia Moritz Schwarcz (2012), “basta notar os dados oficiais que mostram desvantagens profundas no acesso ao trabalho, à escolarização, à moradia”, e que ainda “se expressam nas taxas de mortalidade e até de matrimônio desiguais”.

Talvez nesse ponto da nossa reflexão você esteja a fim de lançar mão do neologismo “mimizento”, adjetivo originado da expressão “mimimi”. Esses são termos que, em linhas gerais, trazem a ideia de “reclamações sem fundamento”, “reivindicações desnecessárias” ou “lamentação aborrecida e imprópria”. São utilizados principalmente por pessoas que entendem os movimentos sociais como algo sem cabimento. No fundo, são pessoas que se sentem ameaçadas diante dos avanços conquistados pelas minorias em décadas de lutas; ou pessoas que, ainda que tenham os pré-requisitos para pertencer a essas minorias, se veem levadas pela ignorância ou pelo oportunismo a se posicionarem como inimigas dos movimentos sociais¹. Você pode pensar que estamos interessados apenas em “fazer militância” com coisas banais. Se você pensou nisso, eu poderia até questionar a sua inteligência, mas pode ser que você seja uma pessoa que usa a inteligência para defender somente seus interesses pessoais. Se for assim, tudo faz sentido: você deve ser uma pessoa branca que nunca precisou pensar sobre a condição social que lhe foi imposta por carregar certas características fenotípicas; talvez você seja uma pessoa herdeira de uma empresa “importante”, que representa uma parte considerável do produto interno bruto (PIB) da sua cidade; no mínimo, seu pai ou sua mãe deve ser um político “profissional”, que descobriu o caminho fácil da politicagem para fazer de um mandato um cargo vitalício; talvez você tenha sido representada positivamente desde sempre nas produções culturais veiculadas nos meios de comunicação; talvez você seja uma pessoa que possui os traços físicos considerados há muito tempo como os traços corretos… Se for assim, você realmente vai se sentir abalada quando nós, negros, pessoas que, segundo a ideologia racista, deveríamos aceitar tudo calados, dissermos basta!

Você não pode dizer que nossas reivindicações são desnecessárias, porque reivindicamos o direito de existir. Certamente você não deu uma olhada no Atlas da Violência 2021, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea. Mas se você se dignar a procurar por essa fonte de informação, verá que, segundo a pesquisa, “a desigualdade racial se perpetua nos indicadores sociais da violência ao longo do tempo e parece não dar sinais de melhora, mesmo quando os números mais gerais apresentam queda”, o que é confirmado novamente pelo Atlas atual.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- IPEA, “em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Em outras palavras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior que entre não negras. Da mesma forma, as mulheres negras representaram 66,0% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação a taxa de 2,5 para mulheres não negras.”

Se os números apresentados sobre as taxas de homicídios não forem suficientes, podemos pensar também em outras mazelas sociais. Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE (www.gov.br), a taxa de desemprego no segundo semestre de 2023 ficou abaixo da média nacional (8%) para os brancos (6,3%) e acima para os pretos (10%) e pardos (9,3%). Essa diferença, que pode parecer pequena, atesta as desigualdades históricas e estruturais que vêm sendo mantidas ao longo de décadas. A existência do povo negro vem sendo ameaçada desde os projetos de embranquecimento debatidos e postos em prática pelo governo brasileiro, diante do processo de abolição da escravatura. A importação de mão-de-obra europeia para o Brasil foi saudada por muitos dos intelectuais e políticos da época como um passo importante para a “purificação étnica” do povo brasileiro².

Sim, vivemos no século 21 — “onde tudo é comum”, como disse o poeta WJota — e ainda nos deparamos com as mais variadas formas de discriminação racial. Infelizmente o racismo é a regra, como já disse Silvio de Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. É uma construção ideológica que se traduz em práticas extremamente danosas para determinados grupos sociais. Não dá para uma pessoa proferir as frases com as quais iniciamos a nossa reflexão e simplesmente dizer que “é uma brincadeira entre amigos”; ou então “ah! Ele(a) não se importa”. Quem tenta se defender depois disso só vai conseguir ser mais racista ainda. Como nos ensina a professora Djamila Ribeiro (2019), “a partir do momento em que se compreende o racismo como um sistema que estrutura a sociedade, essas respostas se mostram vazias. É impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre”. Não se esqueçam também de que o doutor em Direito, Adilson Moreira (2019), já teorizou sobre o “racismo recreativo”, aquele que se apresenta em forma de supostas tentativas de produzir humor. Não há nada de engraçado em piadas que aumentam a naturalização do genocídio de um povo. 

Se até aqui, você, pessoa que acredita sinceramente que não é racista, não pretende mudar de ideia, ou pelo menos se sentiu desconfortável com as minhas palavras, sinto muito enquanto ouço “Olho de tigre”  do Djonga, 2017; e conservo algum otimismo quando lembro dos amigos que compartilham a indignação comigo. Sim, os tempos estão mudando e há quem diga basta de racismo!

 Foto Capa: Jesus Carlos- BBC

As referencias dos materiais usados para a construção do artigo estão disponíveis aqui!

*Alex Conceição é professor de História da rede estadual de ensino, mestrando em Ensino de História, anarquista, letrista e entusiasta do xadrez.

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